terça-feira, 14 de maio de 2019

Aviões levam corpos que levam brisas, quiçá vento: Corpos Informáticos (e)vento



Aviões levam corpos que levam brisas, quiçá vento: Corpos Informáticos (e)vento


Bia Medeiros, Mariana Brites e Natasha de Albuquerque
(Este texto foi publicado no Catálogo Corpuis Urbis. Menezes, Cristaiana Nogueira (org.). Macapá: UNIFAP, 2018. ISBN: 978-85-5476-050-2)


Trocas, calor, brisa, calor, suor, vermelho esparramando nas encruzilhadas, cruzilhadas, amadas, a pele esfolada, cortada, o dentro vermelho em tudo: lojas, carros, roupas e bombeiras. O ketchup é vermelho sangue, o sangue é vermelho ketchup de fast food (Thaíse Nardim). As(o) Amazonas comem enceradeiras, afogadeiras. Enceradeiras: encenadeiras, en-senadores, senadores usados sem ardores se foram, encenadores usados: performance.



Thaíse Nardim - Foto Natasha de Albuquerque

Ainda no ar, na máquina, imitando bicho que voa, entendemos que estacamos no caminho da ilha.
Tantos rios, afluentes, igarapés e mata fechada que os corpos vindos do Planalto Central já transbordavam. Para ir, levavam consigo as variações do vermelho e do sangue. No primeiro dia (percebemos) pessoas em vermelho e quanto mais o tempo ia passando, mais elas surgiam, a cidade se coloria: de colorindo mas muito puxado pro vermelho, vivificando o sol à pino de todo dia.

_ Visto vermelho porque gosto.
_ Visto vermelho porque vesti hoje.
_ Visto vermelho ponto.

Chuvas esporádicas principalmente dentro de cada um, diz a meteorologia sem método: não houve chuva, só rios transbordando encontros esperados/desesperados/irados.

_ PERAÍ!

Vermelho urucum, argila, pele vermelha. Açaí, saci, birutas ao vento não foram. Mas as birutas humanas eram várias e junto com as enceradeiras abraçam os ventos criando movimento: dança.




A brisa úmida vinda do rio lambe nosso suor garantindo frescor barato e pleno. 



ALLA SOUB lança enceradeiras ao rio. Corpos Informáticos -  Foto: Rodrigo Munhoz

O rio, que também é mar, tem ressaca, vaza e enche, dança uma dança de sentir: muda o vento, faz invento. Inventa (e)ventos de acariciar tudo o que há na cidade.
Gostamos de encostar nas coisas, gostamos do dedo deslizando por cada fresta-corpo da cidade, temos vício pelo sangue vermelho que bate dentro das veias e faz a pele esquentar, vício pela pele, pelo com-tato que faz suar. Nos deslizamos em bloco, inundamos também a cidade de outros ritmos. Compomos outros momentos.  Nossa performance é o simples desvio, que não só nosso, é jogo aberto, sem time nem hora marcada.

Sim, o lançamento de enceradeiras ávidas por outros lugares (Campinas, Salvador, Natal, Maceió, Rio de Janeiro e São Paulo) deu-se, uma, duas, três vezes. E de repente: Mari lança a lança DE VERDADE: já não era mais performance: era vida real ou ketchup? Encerando a chuva do cerrado, que também não resiste à infinitude de água e pula no rio. Engolida pela maré que enchia, descansou ali no fundo por uma noite. Ansiedade: poluição? Será preciso abandoná-la? Metal vermelho e(m) pedras. O desapego foi presenteado no dia seguinte pelo retorno da enceradeira: As(o) Amazonas não quiseram nosso lixo, lixo-arte, lixo vermelho-metal, devolveu, volveu, nos presenteou com o inesperado: uma enceradeira vermelha que sorria, após o banho, forçado, porém delicioso.
Ela se diverte com o prazer daqueles que voltam para casa sujos!
Enceradeiras arranham ruas.

Seguem enceradeiras viagem a dentro, rodadas, acariciadas, penduradas, descansadas, descontextualizadas.

_ Macapá, senta cá, no meio do caminho e olha o horizonte.

O Marco Zero é o cu do mundo (Nycolas Albuquerque), rodeamos em volta, o cu é lindo. Composição Urbana. C.U. - o seu é lindo também. 



Com-posiçoes de prazer no Corpus Urbis. Foto: Corpus Urbis


Congela a pista no cu do mundo. Pára, no meio da rua, divagando, desvairando, uma alcatéia de desavisados vermelhos. Esquentadores de C.U. Assados em Macapá, qualquer C.U. num automóvel desliza na pista.

Carros param no Marco Zero, esticam o braço, pegam o panfleto e dizem: Obrigado. TALVEZ EU FOSSE ASSADO. Frango assado, talvez homem ou mulher, pede permissão de ser outra coisa, talvez, dúvida. Trans-euntes são esvaziados de justificativas, sem motivos de estarem ali, recebem informações erradas de errantes. Alguns se esquecem que tem C.U. e se espantam com tal heresia. Denuncia à polícia e leva de camburão um professor loiro de olhos azuis. O delegado ri e fala de Duchamp: Do chão do asfalto (du champ) se faz composição. Está livre! O C.U é livre! Quem tem cu põe o dedo aqui! (se não vai fechar)

Ninguém avisa quando a performance acontece, mixuruca.

As unhas incessantemente se pintam, não deixam-se pintar, de-fazer. Unhas defeitas: fofoqueiras se encostam nas nádegas alheias. Fura-bolo, cata piolho, maior de todos, anelar e mindinho, todos fuleiros defeitos de vermelho sangue.

_ "João disse eu te amoera a cor de um dos esmaltes
_ "André fez o jantarera a outra cor. Mas André não fez o jantar. Quem fez foi Cristiana Nogueira e Pablo Fernandez com a ajuda de Jorge Paulino, Chico Junior. Delícia: arroz de jambú com castanha do Pará, caldinho, beringela, abobrinha, tomate. E a gengibirra da noite passada ainda embalava os ritmos dos corpos.

No hotel, camadas são colocadas, camadas e mais camadas de roupas - desafio ao calor de Macapá 42 graus. O percurso é lento, pesado: 6 kilos de roupas fazem os 100 kilos de carne derreter. No mocó atrás da Fortaleza, as roupas são retiradas, quase retiram-se sozinhas, devido o  calor. 

Os pregos nas mãos suadas deslizam evitando o martelo tenso. Quanto menos roupas, mais calor. O corpo não se esquece tão fácil da experiência. Pouco a pouco, o esconderijo de beijos (mocó) passa a ser também guarda-roupa aberto, aleatório. Poucas pessoas passam mas todas observam de longe, o outro corpo que decompõe seu próprio corpo compondo a paisagem. Ali expostas, estendidas a sol e vento permanecem pouco mais que um dia. Outros corpos desavisados e convidados iteragem, levam embora, afogam, queimam, rasgam. Ninguém sabe o fim daquilo ali, e nem ao menos se teve fim.


Pode tudo n
ão passar de mais uma possível lenda do Forte, lugar ainda mal assombrado onde muitos corpos passaram, pararam e morreram. É na orla, que escorrem os corpos doloridos: contra-ponto, contra-forte, fraco. O vazio tão grande engole e faz lembrar da finitude dos corpos rebeldes, grades, roupas vazias, corpos pelados. Logo, dentro da Fortaleza São José, Raphael Couto sangra em sua pele uma bússola, sem norte, um instrumento impreciso de medição geográfica, potente imagem. Que vêem os corpos do Sul para o Norte? Ris(c)o na pele, tatuagem carnificada, marca histórica de um corpo que desvia de horizontes outros e permite-se saltar no mergulho latino. Performance, como diria Maria Bethânia sobre o amor, não é mais do que o ato da gente ficar no ar antes de mergulhar¨.


Foto de Raphael Couto. Autor desconhecido!

No outro dia, no mesmo dia - pois as unhas não pararam de ser pintadas nem as enceradeiras de participar de todo detalhe- o batom se tornou negro: vínculo zero: beijo invertido, som de pum, cara de C.U. e risadas. Sim, o riso, cara borrada, o ridículo, o silêncio dos transeuntes boquiabertos como se pedissem vínculo zero: quem tem medo de beijo na boca?

Vínculo Zero: Bia Medeiros, Alla Soub e Natasha de Albuquerque. Foto: Cristiana Nogueira


Beijem-nos, antes que o substrato de nossas ações se torne figura de retórica!



Vínculo Zero: Bia Medeiros, Mariana Brites e Natasha de Albuquerque. Foto: Cristiana Nogueira


Na cidade que bombeia tanta informação, muitas árvores existem no centro em forma de ilhas. Nelas dobras e reentrâncias. O prazer áspero da casca convida a mão de Seda a criar mais dobras, invaginar café, barro e água do rio. O que fica nosso na cidade? O que vem conosco? O lance (rastro) das ações são para serem achados ou nunca vistos, o tempo e as pessoas agem diretamente sobre eles modificando e criando outras formas de existência para o que foi ali criado. Invaginações locais, orgânicas, brechas explícitas para o encaixe que também se decompõe. Desaparece. O café marca a cidade também no cheiro. Detalhe na paisagem sobreposta.

Depois do banho de igarapé com argila vermelha, rumamos. Da máquina que avoa só se vê nuvens baixas, paisagem encoberta: dentro da nuvem, vivendo de experiências - já somos outras - e agora de novo outras.  Os corpos se mutam, são entreabertos, permeáveis, errantes e desejantes de encontro.

Dos momentos, presenças e ausências partilhadas por uma rede performática que se expande e deseja conectar-se do Oiapoque ao Chuí. Corpos não sossegariam até imergir nas águas amazônicas e no rio foram da ebulição ao relaxamento. Mal entraram no avião e já dormem. Respiram alto sem critérios, todo barulho é nosso.

Foto de Daniel Seda. Autor desconhecido!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

escritos e ditos. a noção de trabalho em poéticas distintas

http://www.escritoseditos.com.br/bia-medeiros/

concepção e coordenação do projeto
Iracema Lecourt – Universidade de Brasília

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

tese. Parte1. O artista plástico, sujeito e objeto da arte. Suas intervenções: MANI-FESTA-AÇÕES.

Maria Beatriz de Medeiros

tese de Doutorado
orientador: Bernard Teyssèdre
Universidade Paris I- Sorbonne

Paris. 1989


A dilatação do tempo,que insiste no presente de nossas relações, 
resta estrangeira a esta pontualidade do instante. Luce Irigaray

O próprio da narrativa se deve à esta superioridade que ele tem sobre mim 
de estar acabado no momento mesmo em que eu começo a lê-lo. Bernard Pignaud


MACULAGE



Era uma vez uma mulher que se divertia em correr perigos mortais. Daí nasceu o desejo de escrever sobre uma série de ações, ações ditas artísticas efetuadas entre 1982 e 1987.

Este trabalho teórico tenta transmitir a impossibilidade de prever o que se segue à partir do que precede. Ele é descendente de um combate entre a inteligência que se exprime por conceitos, descobrindo ligações causais, analogias, etc. e a galhofa: de prazer em prazer, de anedota em anedota. Assim o instinto foge das demonstrações lineares entediantes. Instinto de sobrevivência, a sobrevivência de nosso trabalho plástico. Os textos aqui reproduzidos tentam o erro, exprimem seus limites, sua nocividade.

A palavra, é ela a cegueira dos movimentos?

O corpo é o ornamento, o espaço da/e realização. Combate. No tempo presente só o corpo carne, o corpo-entranhas, a matéria, o palpável são ritmo. Nenhum retorno possível.

Nós,                    Qual é a parte
  seres anfíbios,                            da sorte (hazard) se a impetuosidade 
nós estamos conscientes                do tocar é guiada pelo
da futilidade              odor impúdico 
deste jogo ((en)jeu).                daquilo que resta de
(des) ordem do desejo?

ESTA TESE
TRATA,
MALTRATA,
TRAI AS 
MANI-FESTA-AÇÕES

Aquele que constrói um discurso sobre uma ação a aniquila, mas as mani-festa-ações aqui esfoladas (dépouillées) já estão esvaziadas de suas raivas e enclausuradas (cloisonnées) em reproduções fotográficas de 1/250 o de segundo destas. Esta tese rói nosso fígado (Cette thèse ronge notre foie, uma honomatopéia de “rói nossa fé”).

Aquele que constrói um discurso sobre uma ação a aniquila, mas as mani-festa-ações aqui esfoladas (dépouillées) já estão esvaziadas de suas raivas e enclausuradas (cloisonnées) em reproduções fotográficas de 1/250 o de segundo destas. Esta tese rói nosso fígado (Cette thèse ronge notre foie, uma honomatopéia de “rói nossa fé”).

Nenhum falso dispositivo para relacionar nossa prática artística, os elementos escritos, reflexivos ou poéticos, as ilustrações etc. A evolução da escrita (1986/1989) se deixa sentir. A pluralidade de tons é, às vezes, voluntária. 

O paraíso é apenas a nostalgia da unidade.

Nossa produção é nossa. A arte da qual podemos falar falar é somente a nossa, de nossa pouca perspectiva. P.S. Nenhum ponto de vista esgota a pluralidade/diversidade do mundo. Nossas criações são um reflexo de nossas percepções de um imaginário particular, tudo isto em um momento único e preciso. A pretensão à universalidade é geradora de direito de exclusão. Durante o carnaval, todo disfarce é possível nas avenidas fervilhantes, abertas aos estrangeiros que não sabem sambar. No entanto, graças à uma norma auto-cêntrica que quer a cultura européia seja a cultura universal, nós seremos sempre o outro, nós seremos sempre do outro lado da minoria adequada ao ideal: a margem. Posição privilegiado no marasmo. 


verdades locais.
                                                         Como nossa escrita
convenções momentâneas 
                                     pode ir
transformação contínua.
                                                    além daquilo que
domínios parciais.
                                                     nosso corpo pode
relações variáveis.
                                   viver?

“Se você tem uma idéia incrível
é melhor fazer uma canção
está provado 
que só é possível 
filosofar em alemão”.
Caetano Veloso. Língua.

A filosofia é somente uma velha tia que veio nos visitar e que se instalou apesar de nossos desejos.

Outras questões normalmente levantadas em capítulos introdutórios:
1- Esta tese é um desafio. Desafio à nossa criatividade. Ser artista, escrivã (vã) (écrivain (vaine)), intérprete, maquetista, “mani-festa-acionista”, organizar na desordem, enganar os discursos lógicos… voluntariamente se perder e acreditar no desafio.

2- Esta tese é um desafio, um desafio à nossa paciência.

3- Quem somos (o) nós (da escrita)?

Estou consciente
da futilidade                    (Beije-me
deste je(u) (eu/jogo)? antes que
 A ambigüidade é   o substrato
    nossa  parceira.                   De nossas ações
 se torne um 
        reduto.)
A desordem existe?
A racionalidade é ilusão?

5-  Em que medida essa tese não foi escrita só para Ti? (com T maiúsculo. referência ao orientador: Teyssèdre)
(Beije me!)

P.S. Na página seguinte duas fotos onde figua, entre outros, o orientador Teyssèdre sorridente (coisa raríssima)

6- Algumas citações, algumas ilustrações e textos foram introduzidos de forma aleatória. Blá, blá, blá. Nós nos propusemos como regra não passar do formato 21/29.7 cm.

O sopro te cola na pele. A dança  frenética dos rituais exorcizantes não impedem a sobrevivência do logos preponderante. Nos(sas) galinhas, serão elas capazes de dissipar o vento cósmico? 

“_ Que os tornados devastem!” A serpente está enojada pelas patas com unhas pintadas (vernis, envernissadas) de nos(sas) galinhas. Nós nos aninharemos nos esconderijos do imaginário? 
“_Como voce se chama?” Na rua Saint-Denis, ou outra, nossos bicos avermelhados ficarão intactos como os tesouros dos Faraós para testemunhar os maiores valores de nossa cultura.
















Era uma vez UMA TESE EM ARTES PLÁSTICAS

O possível:

Nossas ações (são elas obras de arte?) tendem para o orgasmo. No entanto periodicamente assassinos monstruosos alimentam as colunas policiais. Um discurso sobre maníacos é possível? Nenhum ponto de vista esgota a pluralidade-diversidade do mundo (das mani-festa-ações).
ANTROPOFAGIA

Contraditório:

O discurso sobre a arte, sobre uma arte, oferece a contradição. Em um conjunto dinâmico: a verdade e seu contrário.

Dinamismo:

Isto é uma tese em artes plásticas e hoje é meu aniversário.
“… a verdade de um poema não existe sem a textura deste… sem a totalidade de seus elementos.”
______________________________________________________________
Ação e texto se caçam mutuamente.

SUJEITO OBJETO
Qual sujeito? Qual objeto?
INDIVÍDUO MUNDO
Qual indivíduo? Em qual mundo?
O HOMEM SUA ÉPOCA
O ser humano existe fora da idéia de ser humano?
Experiência da realidade
imprevisto
subjetividade objetivação
da linguagem

Beije-me antes que a totalidade de nossas ações sejam reduzidas à palavras alinhadas umas atrás das outras.
Beije-me!

A linguagem corporal dificilmente se tornará linguagem arcaica e comprometida.

Como proceder, para a execução desta tese, se toda ação, performance ou “mani-festa-ação” não  podem nunca ser traduzidas, em sua totalidade, em um texto, ou em uma obra plástica estática, estável, imutável?


Das estratégias:

Isto é uma tese em artes plásticas e hoje é meu aniversário. Não se explicará por um discurso, em seguida ilustrado, nosso trabalho plástico.
Não se bordará um discurso entorno das imagens.

Precisaremos encontrar estratégias de escrita como encontramos, na espontaneidade e na improvisação, estratégias de ação. Aqui, nossas estratégias serão certamente particulares e diferentes das utilizadas para as ações -se havia uma-. Manias, ações, corpos, carne, calor e batimentos de coração, pulsões, impulsões de linguagens que não se identificam muito com a escrita.

















Desta tese:

Todo texto de análise e interrogação de uma atividade vivida se refere à um passado e não pode estar viva. Esta tese, pode ela pretender ser uma mani-festa-ação? Pode ela ser considerada como arte: uma “obra” de arte única, pontual, e efêmera? Efêmera no sentido que ela teme a morte e que ela deseja a própria morte: única maneira para mim, por um ponto final, de poder sempre recomeçar do início. Cada mani-festa-ação me faz viver, inteiramente, um ser a cada vez inédito. (Neste sentido esta tese é uma mani-festa-ação.) O fim de cada mania me liberta para uma outra vida. Este tese é, talvez, uma mani-festa-ação, mas ela não me parece muito uma festa, e, de alguma forma, ela congela (fige) a ação.




Linguagem

Quando pensamos linguagem, três questões se colocam:

1- Utilizamos uma linguagem em nossas ações artísticas, performances? Qual?_ Linguagem da desordem. Linguagem do corpo. Não-linguagem.

2- Utilizamos linguagem em nossas ações? O grito, o gemido, são linguagens. _ Linguagem da ordem do animal.
- Qual linguagem utilizar para este texto?!


Quem escreve este texto?

Me chamo Bia. 
Às vezes me deixo chamar Beatriz, ou Maria.
Meu nome é Maria Beatriz.
Me chamam Madame de Medeiros, Medeiros. Já fui Pinheiro Campos e Aveline, sem jamais ter acrescentado estes nomes àquele com o qual me registraram.
Quem escreve este texto?
“Aquele que fala não é aquele que escreve, e aquele que escreve não é aquele que é.”
Aquela que sou não é aquela que escreve. Aquela que escreve não é aquela que é e que vive em cada uma nossas ações.
Às vezes me sinto menina, d’outras mulher. Por vezes me faço homem, mas posso ser ainda professora Doutora Adjunto III, mãe, artista, performer, coordenadora, uma tremenda irresponsável, ou simplesmente alguém de passagem. 



Escrever um texto sobre performance é uma contradição. Um sistema fechado e reconhecível. Este sistema é incompatível com as performances. As ações são irredutíveis à palavras. Nosso procedimento artístico não quer erigir um sistema, não quer se tornar um método, não funda escola.
O fato mesmo de se exprimir por uma linguagem envelhecida pela repetição, uma linguagem aprisionada, contradiz e freia, que queiramos ou não, a prática artística. (Mas se considerarmos que nesta prática queremos provocar interrogação pelo bombardeamento de contradições, este texto será um enigma à mais).
Amamos o calor. Amamos a cerveja, o mar e o chão bem fresco. Não queremos chegar à lugar nenhum a não ser aquele que implique recomeço. Nossos corpos estão vivos. Nosso trabalho artístico se quer em contínua transformação de tal forma que não seja possível defini-lo, conceituá-lo. Por um lado lamentamos reduzi-lo à palavras, por outro, desafio.


Não realizamos, na arte, nenhum ato de linguagem. Nenhum resultado é procurado (Mentira). Nossas ações não são sistemas. Não fazemos performances nem optima, nem péssima. 
Se nomeamos as ações, nós as aprisionamos, as matamos, as colocamos em conceitos. Esta prática as nadifica. Nós nomeamos nossas ações: Mania-festa-ação, Galinha Assada, Materfagia, Imcompossibilidades, Espetáculo Intersemiótico, Corpos Informáticos, Secreções e Contaminações, Incubus e Sucubus…, e as definimos.
O inverso do jogo se instala quando o simulacro é abandonado pela penetração do mistério. Nem produtos, nem bens, nem obras: risco, vertigem, carnaval. A realidade é incompatível com o ser. No jogo, jogo da vida ordinária, o indivíduo, o outro, que representa, a “persona”, o alienado submetido à aberração da efficaci®realidade, se deixa levar. Não queremos ser agradáveis, nem hábeis. Um carnaval sem máscara, sem as máscaras. “A felicidade é a prova dos nove”Oswald de Andrade. Nem prova, nem exercício, nenhum objetivo (Mentira). O jogo corrompido, contaminado pela vida. Bêbado pela dissolução da ilusão (IN-LUSIO: “entrada em jogo") a consciência se eclipsa. Face à face, entranhas à entranhas com o rosto, e as entranhas desmascarado do real. Mistério, arrepio, pânico, frenesi no universo visceral, angústia, confusão, energias selvagens; quando o real se deixa des-cobrir.
Por definições reencontramos uma coerência em nossa prática artística. Vejam nossa coerência: cada uma nossas ações, cada um nossos estouros de energia (Le Petit Robert, Dictionnaire…, definição de ação: “déploiements d’énergie”) revelam certas manias, isto é “síndromes mentais caracterizadas por distúrbios de humor” (idem, definição de mania). Essas explodem na desordem sem controle. Cada mania, cada exaltação eufórica (idem) dá nascimento a uma festa particular, isto é, a uma vida particular de prazer e de desordem. Cada festa implica diversas ações entrecortadas de não-ações. Estas ações são muitas vezes contraditórias. Improviso, não há repetições.

Não fazemos nem performances, nem happenings, nem eventos. Não somos Art corporel, nem Body-art. 

Para esse texto somos obrigadas, de certa forma, a utilisar uma linguagem codificada até o desgaste. Para as Manie-festa-ações nós negamos toda presença de uma possível linguagem. Nós negamos essa presença em dois sentidos. Por um lado, nossas mani festa-ações são únicas e não se serem de nenhum código. Elas não devem constituir um sistema (ainda que, se analisarmos a totalidade das ações efetuadas nos últimos anos, nós encontraremos uma certa lógica. Nossa comunicação é não-linguística. "Traduzir" nossas ações em uma linguagem qualquer não é razoável. Sejamos razoáveis e deixemos falar nossas ações desordenadas e irracionais. Sejamos razoáveis e escutemos apenas a voz do corpo e a cor do grito.
Por outro lado, em nossas manie-festa-ações não utilizamos nem textos nem palavras, pois essa parte da experiência desapareceu. Esses não são mais "veículos substanciais de sentido, como nos assinala Adorno.
Durante nossas "manias", utilizamos uma não-linguagem da ordem do animal. Trata-se de criar o inverso das palavras, o outro do discurso. Trata-se de instaurar a ordem do grito ou da desordem.



GRITO
Não há texto que corresponda a esse sub-capítulo. Ele é apenas GRITO da pé de página.





Nossos gritos não constituem um sistema fechado, reconhecível, e facilmente "decoficável", no entanto, eles podem constituir significações incertas.
Duvignaud (1974, p. 191, 192), falando de happenings, do Living Theater, de Brecht, afirma no capítulo "A crise da espontaneidade", no livro O Teatro Contemporâneo, que se trata sempre de "encontrar novas relações entre os homens", de ensinar aos jovens espectadores que eles podem gritar "Abaixo o Estado"com alguma chance de se fazer ouvir." Para nós não se trata de gritar "Abaixo o Estado". Esse grito, assim como todos aqueles que se manifestam contra alguma coisa, implicam, como afirma o próprio Duvignaud, "uma repressão proporcional à quantidade de mal-estar e de insegurança que ele terá feito nascer."

Dançar até o esgotamento, gritar, uivar, produzir todo tipo de barulho são parte das cerimonias que buscam caçar ou chamar os espíritos dos mortos.


Se a linha (o desenho, a pintura) têm em si um eco do corpo, "os desenhos são os irmãos dos textos em pressão de angústia", então os desenhos são também irmãos dos textos em pressão de prazer. Sobre o papel a linha escorre livre, ela não segue as paralelas do caderno. Ela toma toda a página, de cima em baixo, da direita à esquerda. Em desenhos o gesto se destaca, se desgarra em uma direção aonde não podemos o sur-preender. Assim os desenhos são irmãos dos textos em pressão de prazer e em intensidade de gozo. O corpo, desenhando no espaço tridimensional um momento infinito e efêmero, não somente com a mão e o braço, mas com todas as partes do corpo, todos membros e membranas, não pode ser linguagem. Ele é a vida mesma se exprimindo por faíscas de prazer, de angústia, tocando o prazer, logo o indizível, como afirma Barthes. 



Bernard Teyssèdre, em Opus Internacional, falando de "artes do corpo", se referindo à Vito Acconci, Lygia Clark, Michel Journiac e Gina Pane, afirma que eles transgridem e seus corpos "transindividuais" servem de "suporte imagem para uma comunicação não linguística." O corpo é capaz de usar uma não-linguagem que se opõe à falsidade da transparência conceitual. O corpo, por sua opacidade, é ruptura. 

Atenção: nosso trabalho não quer ser Body-Art nam Art Corporel.

Nós tentamos não criar nem códigos nem linguagem. Nós não queremos ser reduzidas a um "ismo". Trata-se de sur-preender. Seria necessário desaprender a lingugagem plástica, seria necessário esquecer os valores estéticos ocidentais, as modas. Seria necessário ignorar os possíveis julgamentos do público, não temer reações. (Nunca esqueceremos o dia em que alguém "subiu" no "palco" para nos "descer".) 

Que corpo?
Este corpo que tem dificuldades de se levantar de manhã. Um outro corpo-embrião que rói este ventre inchado gritando (criando) uma outra voz ávida (âpre, áspera, amarga, ávida) e esfomeada. Um outro corpo, esta manhã, se apagando no rasgo-prazer da penetração que desmorona toda consciência. Infinito mergulho instantâneo no esquecimento. Este corpo que se umidifica já na aurora do desejo suscitado por um texto banal. Um outro corpo que não tem mais vontade de escrever sobre outros corpos, outros, que este que procurando entre palavras nuas desperta. “O erotismo, disse, é aos meus olhos, o desequilíbrio no qual o ser se coloca ele-mesmo em questão.” (BATAILLE, 1965, p. 36) Nós desejamos nos pôr em questão à cada instante novamente. O erotismo é um de nossos parceiros preferidos.

Ainda um outro, e um outro, e um outro corpo, sempre o mesmo, feito de ações mecanizadas. Perfuro meu ticket de metrô na caixa metálica. Ticket furado. “Ser rasgado”, dizem os nordestinos brasileiros se referindo às mulheres. E as nordestinas se auto-denominam “rasgadas”. Ticket furado. Corpo-mulher, buraco, rasgo. Objeto do desejo, desejo de objeto. O phallus é o outro. A mulher é a estética.


       A masturbação rasga um corpo arrebatado no silêncio incongruente de uma quinta-feira à tarde.

A nudez feminina e sua presença na arte contemporânea

Um corpo feito de ações repetitivas se aprisiona. Fortaleza. Claustrofobia. Acendo um outro cigarro queimando este corpo de infinitos caracteres. Corpo: “lugar do desejo” (Lyotard). Qual desejo? Corpo, objeto no mundo, incapaz, por vezes, de distinguir certas sutilezas do quotidiano brutal. Sopa de sentimentos. Onde se encontra a fonte? Um corpo-pele e entranhas intestinas. Um corpo único (e esse desejo de gritar?) que vomita conhecimentos fundados em consciências impensadas.
Corpo erótico e peludo, e este cheiro de suor. Nada é como nas publicidades, e ainda por cima eu tenho o nariz torto.
Você já fez amor no banheiro de um barco em alto-mar? Você trepou em árvores, nu, depois de ter feito 30 anos? Já maquiou o corpo inteiro com uma maquiagem gosmenta? Que consciência tem você de seu próprio corpo? Seu corpo, sua propriedade, lugar proibido para mãos sedentas. “Espero no umbigo do deserto.” (Caetano Veloso)
A areia quente contra o corpo úmido. O sal do mar e o Sol massacrante. A lama penetrando por entre os dedos do pé grosseiro. Grossas gotas de suor escorrem, escorregam, entre os seios e um chopp bem gelado. Lembranças de infância de um corpo tornado branco e frágil pela proteção contínua de casacos (manteaux).
“Contra a memória fonte do hábito.” Oswald de Andrade

Por uma memória capaz de revelar a força de um vivido essencialmente corporal. Abaixo a filosofia, com excessão daquela lida à sombra de um meio-dia ensolarado, os olhos queimados pela luz. Que corpo? Porque o corpo? Por que somos cidadãos inteiramente loucos (alienados), com escarros de razão e sorriso irônico: uma fileira de paixões danadas. Meu grito serra o céu ressecado.