segunda-feira, 8 de março de 2021

Acocoré (Arte, COletivos, COnexões e REdes): um projeto de resistência à pandemia ou arte e performance em tempos de telepresença

 

Acocoré (Arte, COletivos, COnexões e REdes): um projeto de resistência à pandemia

­ou arte e performance em tempos de telepresença.[1]

 

RESUMO: O presente texto apresenta o projeto Acocoré (Arte, COletivos, COnexões e REdes) realizado em telepresença desde julho de 2020, isto é, durante uma pandemia. Acocoré foi uma ideia, um movimento, e, de repente, (e)vento: site, performances, entrevistas, vídeos, isto é, movimento diruptivo fazendo História, um projeto efetuado por 20 artistas de diversos estados do Brasil e por brasileiros vivendo no exterior. Aqui dialogamos, principalmente, com Jacques Rancière, em O Destino das Imagens (2012), e Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos.

 

PALAVRAS-CHAVE: Acocoré, Arte, Coletivos, Conexões, Redes.

 

ABSTRACT: The following paper presents the Acocoré project (Art, COlectives, COnnections and Networks), conceived and carried out online and over telepresence since July 2020, during the pandemic. Acocoré was an idea, a movement, and suddenly is (e)vent: website, performances, inter-actions, videos, therefore disruptive moviment making history, a history carried out by 20 artists from different states of Brazil and by Brazilians living outside Brazil.

Here we dicuss with Jacques Rancière, in The Destiny of Images (2012) and the Research Group Corpos Informáticos.

 

KEYWORDS: Acocoré, Art, Collectives, Connections, Networks.

 

RESUMEN: Este texto presenta el proyecto Acocoré (Arte, COlectivos, COnexiones y REdes) realizado en telepresencia desde julio de 2020, es decir, durante una pandemia. Acocoré fue una idea, un movimiento, y de repente (e) viento: sitio web, performances, entrevistas, videos, es decir, un movimiento disruptivo haciendo Historia, un proyecto realizado por 20 artistas de diferentes estados de Brasil y por brasileños residentes en el fuera de Brasil. Aquí dialogamos con Jacques Rancière, en O Destino das Imagens (2012) y Grupo de Investigación Corpos Informáticos.

 

PALABRAS CLAVE: Acocoré, Arte, Colectivos, Conexiones, Redes.

 

 

De repente, o silêncio. Não mais "teatro, boate, cinema" (Luiz Melodia, Congênito, 1976). De repente o pouco que se tem representa tudo e/ou o muito que se tinha se fechou. A vida cessou nas ruas. Não mais carros e ônibus, desde às 6 horas da manhã, arranhando o sono pouco de quem muito correu. O sono se esparrama junto com o medo. Silêncio: ninguém vai chegar e ninguém vai sair. Não haverá convites nem vernissages nem aniversários nem almoços familiares nem viagens, hotéis ou outras paisagens.

 

A COVID 19 tomou a vida de muitos no momento em que escrevo, janeiro de 2021. A COVID 19 tomou a vida de 1% da população brasileira. Presa em casa, 50% da população, e o vírus passeando nas ruas, calçadas, praias e parques. Os teatros escuros e fechados ruminando mofo e poeira em poltronas tortas; as boates silenciosas e ninguém cheirando nos banheiros, os cinemas surdos, cegos e mudos com portas enferrujando. Os museus e galerias de arte acumulando um vazio de sentido de obras de arte enclausuradas.

 

A arte se completa na interação e/ou na iteração.

A iteração é o processo que acontece quando existe, em performances abertas à participação do público, a participação de transeuntes e/ou errantes (que somos todos nós), a efetiva participação. Por iteração entendemos, com Jacques Derrida (1990, p. 7 e 120): Iterabilidade- (iter, provavelmente vem de itara, outro em sânscrito, e tudo o que se segue pode ser lido, o trabalho fora da lógica que liga a repetição à alteridade) [...] A iterabilidade altera, parasita e contamina o que ela identifica e permite repetir; faz com que se queira dizer (já, sempre, também) algo diferente do que se quer dizer, diz-se algo diferente do que se diz e gostaria de dizer, compreende-se algo diferente etc. Na iteração, a performance proposta pode e deve se modificar, se contaminar, ser outra pela participação dos outros. (Medeiros, 2017)

 

A arte se completa na interação e/ou na iteração. Sem ser vista, ela é, naturalmente, invisibilizada, mas também inviabilizada. Um papel cheio de pontos, de linhas e de tintas nada pode dizer em uma gaveta, mofando. Um grito não escutado escorre pelas paredes mudas e a performance congela o artista na geladeira que estala, range, mas não interage nem iterage.

 

Assim, foi se passando o inesquecível ano de 2020, se arrastando entre paredes ou brilhando, um pouco, nos 15 minutos em que o sol toca janelas, na cerveja solitária ao final do dia surdo, em intermináveis séries televisivas agora esgotadas: ninguém filma, ninguém atua, ninguém monta cenários que permitiriam outros devaneios para longe deste confinamento. Com fim? Não sabemos, mas certamente, lamento.

 

14 dias, 30 dias, 60 dias. No meio da solidão, julho de 2020, uma mensagem. Tratava-se de um convite para fazer uma sequência de fotos sobre máscaras, feito por Juliana Cerqueira,[2] pessoa que não via há mais de dez anos, com quem havia colaborado em alguns trabalhos, em arte e tecnologia, isto é, em performance em telepresença[3] do Grupo Corpos Informáticos, que coordeno desde 1992.[4] Resolvi telefonar e questionar, ao que me foi respondido que era uma proposta inicial ainda sem rumo definido. Assim fizemos, uma “simples” sequência de fotos.

 

Me adianto no texto para não deixar os leitores inquietos: Acocoré[5] é hoje, janeiro de 2021, a melhor coisa que fizemos, Juliana e eu, mas também todos aqueles que vêm participando deste projeto: ele mudou nossas vidas, ele nos dá felicidade, risadas, danças, trocas, comédias, debates sérios, (e)vento e uma infinita coleção de figurinhas no WhatsApp. Temos performances coletivas aos sábados no Zoom, nas quartas-feiras temos o projeto “Entre-atos, nunca entrevistas” no Instagram,[6] nas segundas-feiras temos um grupo de estudos (leitura atual: O Destino das Imagens, Rancière, 2012), temos um site (criado e alimentado por Juliana Cerqueira: https://acocore.wixsite.com/acocore) que contém vídeos, fotos, textos e uma galeria de arte de objetos pós-performance e cerca de 300 mensagens no WhatsApp por dia: conversa séria: 2%; diversão, comédia, brincadeira, palhaçada crítica: 98%. Temos, inclusive, uma marca.


Figura 1: Logomarca do Projeto Acocoré

 

Acocoré nasceu Arte, Coletivos, Conexões e Redes em 18 de julho de 2020, com a performance “Descobrindo Máscaras”. Como dito, desde esta data temos performado todos os sábados pelo Zoom. A cada performance corresponde um título, um texto e uma imagem e/ou vídeo que convida para a ação (criação e design: Juliana Cerqueira).

Somos, hoje, em ordem alfabética: Ana Reis (GO); Alex Simões (BA); Arthur Scovino (RJ, BA, SP); Bia Medeiros (RJ, DF); Beatriz Provasi (RJ, Dinamarca); Carla Rocha (DF, USA); Cássia Nunes (GO); Chico Fernandes (RJ); Clarisse Tarran (RJ); Cristine Carvalho Nunes (RS); Eduardo Mariz (RJ); Juliana Cerqueira (RJ); Maíra Vaz Valente (SP); Milene Lopes Duenha (SC, PR); Naldo Martins (AP); Raphael Couto (RJ); Renan Bacci (SP); Ricardo Garlet (SC); Tatiana Duarte (RS); Valéria Medeiros (RJ); Zélia Caetano (PR); Zmário (José Mário Peixoto Santos. BA). Alguns destes artistas conhecemos pessoalmente e/ou realizamos trabalhos em grupo, outros foram aparecendo e se tornando parte deste movimento, digamos, necessário. Alguns participam desde o início, outros acocoraram há pouco, outros observam sem nos deixar vê-los, outros pululam por lá.

Rancière (2012) diria: “sem medida da mistura” (p. 52), ou “justaposição caótica” (p. 54) , ou, ainda, “é o comum da desmedida ou do caos que doravante confere à arte sua potência.” (p. 56) Gilles Deleuze e Félix Guattari (2005, p. 199) diriam: “movimentos de desterritorialização”, “linhas de fuga possíveis”, “assegurar aqui e ali conjunções de fluxos”, “continnums de intensisdade”, “fazer passar e fluir os fluxos conjugados”, conexões de desejos”, “máquinas coletivas”.


 Figura 2: Acocoré, Grupo, 2021. Performance. (Fonte: Arquivo Bia Medeiros, https://acocore.wixsite.com/acocore.) Da esquerda para a direita de cima para baixo: “Enquanto isso na pia” (Naldo Martins); Ricardo Garlet; Zmário; Maíra Vaz Valente; Cássia Nunes; Naldo Martins; Raphael Couto; Milene Lopes Duenha; Arthur Scovino; Juliana Cerqueira; Bia Medeiros. Fonte: https://www.instagram.com/artecoletivosconexoes/

 Podemos dizer, com Rancière (2012, p. 28) que nossa performance “se realiza ao suprimir-se, que distingue o distanciamento da imagem para identificar seus procedimentos às formas de uma vida inteiramente em ato, e que não separa mais a arte do trabalho ou da política.” Em tempos de confinamento e solidão, nossas performances e lives são trabalho, uma violenta produção artística (duas performances por semana), e política, um outro da política, resistência, potência de grupo e questionamento, isto é, telepresença como “vida inteiramente em ato”.

 Em outubro de 2020 solicitamos aos participantes textos sobre o Acocoré:[1] 

Acocoré é oxigênio com que o galo enche o peito para cantar toda manhã. É o som do respiro da tartaruga na superfície do mar aberto. É o chão da plataforma suspensa na nuvem criada para promover encontros virtuais, performáticos e simultâneos de corpos aflito que se estrebucham na terra em chamas.

@arthurscovino (Arthur Scovino, SP, 04/10/2020)

Acordar no espelho das nossas sombras voláteis. Poesia bordada dos sentidos. Uns lá e eus aqui. Textura de espaços e tempos, tautocronia. Renda preciosa, colcha de retalhos de uma memória desejada. Música rebelde dos desejos. Teletransporte do sopro, toque.

@carlarocha (Carla Rocha (RJ, DF, USA)

Acocora a vida, o mundo, o tempo que vai passando, num pequeno instante de nós captado. Nosso sexo, desejos a flor da pele, na pele película do corpo, da tela, do vídeo. Exposto, entregues ao devir do agora, do já, na potência que move os corpos. Conexões onde corre eletricidade, afeto, água de rio, mar, extinguindo distâncias na imensidão do existir.

@nau_vegar (Naldo Martins. AP, 08/10/2020)

 

Uma ideia,

Um movimento,

E, de repente, vento.

Um tormento, um lamento

E, sem muito, evento.

Um retorno entardecido,

Talvez, distorcido, talvez,

Inacabado, no tempo mutilado.

Eu, magia;

Tu, vida;

Ela, existência;

E nós, nós, nós,

E eles e elas e outros também:

Acontecimento.

@performancecorpopolitica (Bia Medeiros. RJ, 13/10/2020)

 

Vemos, então, oxigênio, respiro, mar aberto, nuvem, acordar, sombras voláteis, renda preciosa, colcha de retalhos, desejos a flor da pele, devir do agora, devir do já, movimento, vento, vida, existência, acontecimento, isto é, arte em tempos de pandemia.

Como dito, cada performance aos sábados possui título e texto, cada um sugerido por um de nós. Eles são propostos, mas quase nunca seguidos. Performances todos os sábados! Haja repertório! E, em tempos de pandemia, é praticamente impossível perseguir propostas: em geral, trabalhamos com o que temos em mãos, nossos corpos, objetos, animais (gatos, cachorros, pássaros fazendo ninho na cozinha e até cavalos), trabalhamos com nossas pias sempre de novo e de novo lotadas. Alguns lavam banheiros, poucos passeiam.

 

Panos/Plumas/Revoltas e ironia. 25/07/2020

Panos                              Plumas                    Revoltas e ironia.

Planos                            Puros                        Reflexos e zombarias.

Plenos                            Puns                         Recuerdos e zunzunzum.

Planaltos                        Praias                       Resenhas e fuleragem.

Prumos                           Pontas                      Ritmos e mares.

Tortas                             Portas                       Ratos e maresias.

Desvios                          Devaneios               Romarias e rosáceas.

Pontes                            Padrões  Rendas e distância.

Demônios meus          Desejos nossos     Recados outros     Emendas frouxas.

Paralelos                        Convexos               E triângulos amorosos.

População perplexa                      Poderes não mais podres

Mas                                 Purulentos              Assassinos.

Povo preso, Povo e medo.

Revolta                           Discórdia                70 %       #elenão. 

FORA                            Ferro                         Muita tristeza e hospitais lotados.

FORA.                           Foda.                        Foda-se.

ARTE ARTE ARTE (dito como se ladrasse).

Texto proposto por Bia Medeiros. 25/07/2020

 

Desengaiolar em durAÇÃO. 10/10/2020 

Desengaiolar a pele que não toca. Desengaiolar as mônadas, fênix, minotauros e seres mágicos...

"O que pode o corpo?": tudo e nada.

Corpo engaiolado. Corpos atravessados por linhas duras, às vezes flexíveis, mas certamente caóticas, malcriadas.

Surge em frestas o desengaiolar constantemente, urgindo como o vento, rasgando o grito e a palavra. Desengaiolar as mônadas, compor com os corpos, confabular com as gotas do oceano, em durAÇÃO, ultrapassar as dimensões do cabível.

A experiência é coletiva. Habitamos vários nós e derivantes, cambiantes, embriagantes. Mover as grades da gaiola, convocar corpos para o experimento ao beijar a terra, descer e subir camadas. Encontrar a morte com vestes na ressonância da poesia da vida... Abrir a gaiola dos loucos, encontrar um lugar de nó (s).

Enfim, sem fim. O gozo vital.

Bem vind@s!

Texto proposto por Cristine Carvalho Nunes. 10/10/2020

 

Astrolábio de sete faces (6a face). 28/11/2020

Fórmula: sangue, saliva, fio de cabelo ou sêmen, líquido amniótico, ossos, face, cu, dentre outros tecidos, entulho de amante, musa, silêncio, problemas, oxigênio, tapa-buraco, permissão progressiva, triz, sigilo, troca de segredos, treda ao lado, tecnologia, contas para viver melhor,  conexos e conexões, odum, incêndio, puta dor, fúria e alta tensão no mundo, todos temos. No meu corpo, o canto.

Texto proposto por Alex Simões. 28/11/2020

 

As performances aos sábados são simultâneas: “cada um no seu quadrado” ou retângulo, por vezes, entrando em conjunção com uma das ações de outros artistas. Por vezes, todos entram em uma mesma vibração, na mesma cor, em movimentos semelhantes.[1] Por vezes, não há consonância, mas “a potência caótica na criação de pequenas maquinarias do heterogêneo.” (RANCIÈRE, 2012, p. 66) Estamos fazendo arte (sempre lido como quem late), poesia, histórias e História: “O espaço do choque e do contínuo podem ter o mesmo nome, História. De fato, a História pode ser duas coisas contraditórias: a linha descontínua dos choques reveladores ou o contínuo da copresença.” (Idem, p. 70)

 Assim se expressou Zmário (José Mário Peixoto Santos) no WhatsApp

Reflexões matutinas: não noto que apresento performances via Zoom... vejo que improviso em telepresença, como nas aulas de Improvisação em Dança, na Escola de Dança da UFBA, quando levávamos [...] objetos para performar (e as músicas tocadas davam o tom das ações). Performance, para mim, requer uma determinada elaboração mesmo que o ensaio nunca ocorra...

Leio os txts propostos para o encontro no Zoom, ficam reverberando no meu cabeção, separo alguns objetos que se aproximam simbolicamente dos conteúdos dos txts minutos antes, ligo a cam, e os aciono de maneira improvisada... Então, ao meu ver/sentir, me apresentar no Acocoré é um exercício contínuo de improvisação em performance, ou seja, é por em primeiro plano e em prática um dos elementos característicos da performance: o improviso.

O que operamos em Acocoré, o que Zmário afirma aqui e opera é “transformar as produções finalizadas, da imageria [social e comercial] em imagens opacas, estúpidas, que interrompem o fluxo midiático” e, “despertar os objetos úteis adormecidos ou as imagens indiferentes da circulação midiática suscitar o poder dos vestígios de história comum que eles comportam.” (RANCIÈRE, 2012, p. 35) 

O projeto “Entre-atos, nunca entrevistas”, no Instagram, às quartas-feiras, foi inicialmente pensado no sentido de gerar uma maior iteração entre dois artistas e havia, sobretudo, a intenção de fugir do formato de entrevistas que foi intensificado em diferentes projetos artísticos durante a pandemia. Estávamos cansadas de entrevistas com carinhas: duas carinhas falando em discursos muitas vezes entediantes: somos artistas! Como não poderia ser diferente, “voluímos”[2] para um formato outro: um artista coordena a sala do Instagram e convida aleatoriamente qualquer um de nós, a qualquer momento. Esta iniciativa gera como que programas televisivos (engraçadíssimos) com convidados improvisando: entrevistadora chique, Chacrinha, Roberto Carlos e Show da Xuxa, programa de perguntas... O formato se revela cansativo para aquele que “orquestra” e, também, para os convidados, que permanecem em performance por 40 min tendo direito a “entrar em cena” de 3 a 15 minutos, no entanto, cria uma imensa diferença, ou melhor, dessemelhança: “As imagens da arte são operações que produzem uma distância, uma dessemelhança.” (Rancière, 2012, p. 15)  

Há necessidade de citar, também, a proposta de “ensaio”. Em polêmica gerada no WhatsApp, que denominamos “polenta”, discutimos diversas questões da performance. Entre elas, questões que sempre voltam quando se trata de performance. Por exemplo, o próprio questionamento sobre o que é performance. Em 2010, após uma visita às exposições Marina Abramovïc (MoMA, NY, 2010) e 100 years of performance no PS1, ao retornar ao Brasil, discuti com o Grupo Corpos Informáticos sobre o fato da performance “já” estar nos museus, isto é, ter se tornado doce (SERRES, 2005), se tornado linguagem. A conversa nos levou à necessidade de um novo termo para a performance e declaramos não mais fazer performance, mas, fuleragem e, ainda, não mais realizar arte efêmera, mas fazer coisa mixuruca. A fuleragem pode ser barbárie, pode ser vagabunda, pode ser invertebrada, nego fugido, indolente, relaxado, mas não subserviente. A troça e a trapaça estão aí subentendidas. A ironia e o cinismo podem ser estratégias. Acocoré, no mesmo sentido, preferiu, não mais fazer performance, mas unicamente ensaio. No ensaio podemos errar, ser errantes, corpo sem órgãos, matilha ou movimento. Performance, fuleragem ou ensaio? “Proust chama essa desfiguração de denominação, qualificando a arte da sensação pura em Elstir: ‘Se Deus Pai criara as coisas nomeando-as, era tirando seu nome ou dando-lhes outro que Elstir as recriava.’” (Rancière, 2012, p. 88).[3]

Outra questão foram algumas possibilidades da performance, do ensaio, ou da fuleragem que divergem da nossa. Possibilidades: 1- o artista idealiza e realiza a performance com seu corpo; 2- o artista idealiza e realiza a performance com seu corpo e, posteriormente, paga alguém para refazer a performance (re-performance, exemplo: Marina Abramovic no Museum of Modern Art, NY, 2010); 3- o artista idealiza a performance e paga alguém para realizar a performance por ele. A isto podemos chamar “performance terceirizada” (exemplos: Ayrson Heráclito em Transmutação da carne em MAI Terra Comunal, onde contrata performers e performa com eles, SESC-SP, 2015 ou Laura Lima). Afirma Laura Lima: Não entendo o meu trabalho no sentido de performance historicamente, os corpos sempre são transformados em carne, objetos, têm tarefas. O corpo pode ser visto como um barro que se molda.”[4] Pasmo: o corpo do outro entendido como carne, objeto, com tarefas, como barro que se molda. 

O corpo, neste caso [experiências com sociedades não-ocidentais], remete sempre a si e aos outros corpos ao mesmo tempo, sendo essencialmente no plural. Não é de modo algum isolável daquele a quem atribui um rosto e de quem é o único indício de existência. Também não é separável daqueles com quem coexiste. Característico de ambientes sociais comunitários, este corpo não tem funções delimitadoras. Não é propriedade privada. Não é eminentemente uma marca de identidade social. Não é máscara. Não é indicador de um personagem. [...] esse corpo é exatamente onde o homem transborda de si, onde recusa a inércia e os confortos que o tornam passivo e dócil. (RODRIGUES, 1999, p. 191. Grifo nosso).[5]


Neste questionamento outros artistas foram postos em questão: Francis Alys e seu movimento de montanha, Tania Brughera e Ana Mendieta, Santiago Serra, Tino Seghal, mas como afirma Zmário, em polenta no WhatsApp: “não tenho opinião formada”.

Corpos Informáticos, por diversas vezes, se tornou e se autodenominou “Corpos Expandidos”[6] Trata-se uma prática diferente das acima citadas. Corpos Informáticos, desde 2010, principalmente, idealizou movimentos e/ou ações, sempre no improviso, isto é, recolheu, amaciou, tratou objetos, mas também camisetas (no sentido de formar visualmente um grupo maior) e propôs performances livres a outros que, participando com o grupo, integrando, iteragindo fizeram potência. Gostaria de citar apenas dois exemplos para não me estender: Encerando o Congresso Nacional, 2010, e Dança das cadeiras, 2016. Na primeira, preparamos 17 enceradeiras vermelhas, uma máquina de escrever e um aspirador de pó, e distribuímos aos participantes do evento Performance, Corpo, Política e Tecnologia.[7] Na segunda, catamos cadeiras de plástico quebradas, abandonadas, isto é, “lixo”, plástico e micro-plástico infinitos, e distribuímos aos participantes do evento Participação, Performance, Política.[8]


Figura 3: Encerando o Congresso Nacional, 2010. Evento Performance, Corpo, Política e Tecnologia. MINC/Petrobrás. Na foto (da esquerda para a direita): Daniel Toso (Espanha), monitora, policial, Bia Medeiros (Corpos), Alla Soub (Corpos), monitora, Daniela Félix (Coletivo Osso, BA), Fernando Aquino (Corpos), Galdino (iluminador), Zmário (Coletivo Osso, BA), Camila Soato (Corpos), Tiago Moria (monitor),  Luara Learth (Corpos), João Matos (Coletivo Osso, BA), Rose Boaretto  (Coletivo Osso, BA), monitor, Coletivo Empreza (GO).


Figura 4: Dança das cadeiras, 2016. Evento: Performance, Participação, Política. REDES/FUNARTE. Na foto (da esquerda para a direita): Gustavo Silvamaral (Corpos), Raphael Couto (RJ), João Stoppa (Corpos),  Mateus de Carvalho Costa (Corpos),  Matheus Opa (Corpos), Elen Braga (SP), Cássia Nunes (GO), Maria Eugênia Matricardi (Corpos), Thaís Guedes (BA), Ayla Gresta (Corpos), Bia Medeiros . 


Entre 1996 e 2006, Corpos Informáticos muito investiu na investigação artística através da telepresença.[1] Nossa investigação era sobre a possibilidade de um "corpo informático", de um "corpo-carne numérico", possibilidade de sobrevivência de um corpo sensual, tornado imagem/movimento/som/vídeo, ou melhor, um corpo tornado “quase-presença” apenas pelo bombardeamento de raios luminosos, gerando sensação, sensível, quiçá, possibilidade de iteração efetiva, isto é, arte (lido como quem late). Desejo de presença real. O desejo do outro é capaz de gerar prazer. O desejo do outro, por mim, é capaz de prazer estético. A telepresença, atualmente, no projeto Acocoré, é possibilidade de estar junto sem ser fisicamente real, no entanto, estando “presentes”, isto é, ausentes. Corpo real, “ausente-presente”, tocando o sensível: som, imagem, movimento, palavra, poesia, piada nos retiram do confinamento para nos jogar em Acocoré.

Somos sensíveis, agora, muito sensíveis à telepresença, ela constitui, para nós enclausurados pelo coronavírus, as nossas próprias histórias e a História. E nós, acocoréticos brasileiros, enclausurados e desgovernados, nos lambuzamos de tecnologia para sermos nós mesmos, isto é, corpos desejantes vazando por telas e escapando da monotonia, da covardia, da hegemonia de um estado falido, decrépito e agonizante.

Não tenho certeza se Acocoré é um grupo, um espasmo, um refúgio, um lapso, um sopro ou um porto, mas com certeza tem sido porta para outros devires, sonhos por outros espaços, lance de felicidade, fagulha de delícia e um bocado de risada.

Figura 5: Projeto Acocoré. Proposta: Banquete (Bia Medeiros): 15 de agosto de 2020.

Figura 6: Projeto Acocoré. Proposta: Do outro lado da rua (Naldo Martins): 14 de nov. de 2020.

De repente o silêncio. Não mais "teatro, boate, cinema" (Luiz Melodia, Congênito, 1976). Acocoré, segundas (teoria) e quartas-feiras (cinema) e sábados (festa). A vida cessou nas ruas, nas telas pulula, dança e ri. Carros e ônibus, desde às 6 horas da manhã, voltaram, mas lá fora o medo permanece. Silêncio: ninguém vai chegar e ninguém vai sair: Acocoré vai mandar 247 mensagens e muitas delas serão conforto, discussão, palhaçada ou zombaria. Haverá convites, vernissages, aniversários, almoços, viagens, hotéis e outras paisagens nas veias de um coletivo diruptivo e simultaneamente coeso.

 Sejam bem-vindos!

Referências

AQUINO, F. & MEDEIROS, M. B. Corpos informáticos. Cidade, corpo, política. Brasília: PPG-Arte, 2011.

BARRETO, A. H. de L. Os Bruzundangas. In: Prosa Seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2001.

DELEUZE, G e GUATTARI, F. Mil Platôs. São Paulo: editora 34, 2005.

MEDEIROS, Maria Beatriz de. Sugestões de conceitos para reflexão sobre a arte contemporânea a partir da teoria e prática do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos. Art Research Journal. Brasil. V. 4, n. 1, p. 33-47, jan. / jun. 2017.

--------------. http://grafiasdebiamedeiros.blogspot.com/

RANCIÈRE, Jacques. O Destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Paris: Grasset, 2005.

 



[1] http://corpos.org; http://www.corpos.org/telepresence2; http://www.corpos.org/teleperformance; http://www.corpos.org/weblandart.

   

[1] Todas as performances são gravadas e, posteriormente editadas por Juliana Cerqueira. Os vídeos editados possuem cerca de 7 minutos e estão postados no site do Acocoré: https://acocore.wixsite.com/acocore/videos.

[2] “Volução” é outro conceito por mim desenvolvido: volução não é evolução, nem devolução, nem involução. Na volução não há progresso nem novidades. Nada é novo, tudo volui, re-volui. Há volução, processos em voluta, em espiral rodando sem objetivo, sem jamais atingir o centro (inexistente), sem jamais manter um só movimento. A volução se aproxima da volúpia quando paixões deixam mentes-corpos se tormando-se um corpus político de prazer em grupo. As fragatas planam em volução.

[3] Elstir é um personagem do livro À la recherche du temps perdu de Marcel Proust. Elstir simboliza, para Proust, o pintor visionário, aquele que é capaz de ver o mundo com outros olhos, e, através dele, o romancista constrói seu pensamento sobre pintura.

[4] https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa215255/laura-lima

[5] José Carlos Rodrigues é professor-associado da PUC-Rio e professor titular de antropologia da UFF. Doutor em Antropologia pela Université Paris 7, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ e graduado em Ciências Sociais e em Direito pela UFF.

[6] Corpos Expandidos são amigos, próximos, artistas, iteratores, sempre dispostos a iteragir.

[7] Performance, Corpo, Política e Tecnologia. Evento organizado pelo Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, 2010. Financiamento: MINC-Petrobrás. www.performancecorpopolitica.net

[8] Participação, Performance, Política. Evento organizado pelo Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, 2010. Financiamento: REDES-Funarte. www.performancecorpopolitica.net

   

[1] Para todos os textos ver https://www.instagram.com/artecoletivosconexoes/




[1] O presente texto, aqui revisto e ampliado, foi inicialmente enviado para publicação na revista Poiésis, Universidade Federal Fluminense.

[2] Juliana Cerqueira é artista multimídia, graduada em Pintura pela UFRJ, reside e trabalha no Rio de Janeiro, pesquisadora, graduada em pintura pela UFRJ, pós graduada em docência do ensino fundamental e médio pela Universidade Cândido Mendes, circense por puro amor.

 

[3] Performance em telepresença ou teleperformance é performance realizada na rede mundial de computadores: projeções, computadores e iteração virtual.

[4] Corpos  Informáticos  é  grupo  de  pesquisa  prática  e  teórica.  Fundado  em  1992,  na Universidade  de  Brasília,  realiza  performance/fuleragem,  composição  urbana  (C.U.), videoarte,  webarte;  organiza  eventos  e  (e)ventos.  Corpos  Informáticos:  Alla  Soub (Mariana  Brites), Ana Reis, Bia Medeiros, Carla Rocha, Fernando Aquino, Jackson Marinho, Mateus de Carvalho Costa, Matheus Opa, Natasha de Albuquerque, Zmário (José Mário Peixoto) e mais: sempre cabem Corpos Expandidos. www.corpos.org; www.performancecorpopolitica.net; www.corpos.blogspot.com.br.

[5] https://acocore.wixsite.com/acocore

[6] https://www.instagram.com/artecoletivosconexoes/

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