Performance artística e tempo
publicado inicialmente em Tempo e Performance.
MEDEIROS, M.B., MONTEIRO, M.F. Brasília: PPG-Arte/UnB, 2007.
Maria Beatriz de Medeiros
Mácula
Composição
sobre cartaz
publicitário rasgado.
Paris,
1986
A dilatação do tempo,
que insiste no presente de nossas
relações,
permanece estrangeira a essa pontualidade do instante (Luce Irigaray).
Era uma vez uma mulher que se divertia em correr perigos mortais.
Essa mulher era artista e praticava, sobretudo, a linguagem
artística performance.
Realizar um
trabalho teórico, texto lacrado a sete chaves, sobre uma prática
efêmera, promete definitivamente sepultá-la.
Assim, este texto tentará transmitir a impossibilidade
de prever o que se segue a partir do que precede, tal como em performances onde
reina o improviso.
Este é descendente de um combate entre a inteligência,
que se exprime por conceitos descobrindo ligações
causais, analogias etc.,
e a galhofa:
de prazer em prazer, de anedota em anedota.
Assim, o instinto fugirá das demonstrações lineares entediantes.
Instinto de sobrevivência, a sobrevivência do trabalho
artístico.
O texto rabiscado tenta o erro, exprime seus limites,
sua nocividade.
Beijem-nos,
antes que o extrato de nossas ações se torne figura de
retórica.
A palavra é a cegueira dos movimentos?
O corpo é
o ornamento ou o espaço da/de realização?
Combate.
No tempo presente,
só o corpo-carne, o corpo-entranhas, a
matéria viva, o palpável é ritmo.
Desenho (17/21 cm). 2010.
Nenhum retorno possível.
nós ‑ qual é a parte ‑
seres
anfíbios ‑ da
chance, se a IMPETUOSIDADE ‑
nós estamos CONSCIENTEs
‑ do tocar é guiada pela
da futilidade ‑ odor impudico
desse jogo ‑ daquilo que
resta de
(des)ordem
do desejo?
ESTE TEXTO
TRATA
MALTRATA
TRAI
a PERFORMANCE.
Aquele que constrói um discurso sobre
uma ação a aniquila.
No
texto, a performance é esfolada.
Fora de seu tempo, ela é esvaziada e
enclausurada
em reproduções fotográficas ou vídeos.
Pensar a performance artística e seu
tempo é falar de fragmentos de memória, buscar religar artificialmente momentos
‑ escrita espalhada na desordem do quotidiano. Nenhum ponto de vista esgota a
pluralidade/diversidade do mundo dessa (não) linguagem. Em geral, a performance
secreta um desejo de perturbar a
ordem de quotidianos enfeitiçados pela regularidade. Ser volúvel e
contraditório. Borboletear essa sopa de culturas e não fugir do carnaval. Coquetel
racial. Consciência epidérmica.
Ser
antropófago e driblar a cultura ‘sorbonnardiana’.
Performance Materfagia. Rio de Janeiro, 1985.
O paraíso é apenas a nostalgia da
unidade.
A performance é processo (im)puro.
E se dela
falarmos, estaremos sendo sempre parciais:
cada um de
sua perspectiva pouca.
Essa arte é
um reflexo de percepções de um imaginário particular, tudo isso em um momento
único e preciso.
A palavra,
que pretende a compreensão universal de uma ação artística efêmera, ou não,
será sempre geradora de direito de exclusão.
Durante o carnaval,
todo
disfarce é possível nas avenidas fervilhantes,
abertas aos estrangeiros e a muitos brasileiros que não
sabem sambar.
No entanto,
graças a uma norma autocêntrica que quer que a cultura européia seja a cultura universal,
nós seremos
sempre (o) outro, nós estaremos
sempre do outro lado da minoria adequada ao ideal: à margem.
Posição
privilegiada no marasmo.
verdades locais,
convenções
momentâneas,
transformações
contínuas,
domínios parciais,
relações variáveis.
Como nossa escrita pode ir além do que
nosso corpo pode viver?
Se você tem uma idéia incrível,
é melhor fazer uma canção,
está
provado
que
só é possível
filosofar
em alemão
(Caetano
Veloso).
A filosofia é somente uma
velha tia que veio nos visitar e se instalou apesar de nossos desejos.
As teorias filosóficas, assim como a percepção e o
senso comum,
Podem imobilizar o real, paralisar o devir e ainda
conferir a esse
conhecimento artificial e esquemático o prestígio da
especulação metafísica.
Quem
somos (o) nós (da escrita)?
A ambigüidade é nossa parceira.
Beijem-nos,
antes que o
substrato de ações artísticas se torne figura de retórica!
A dança frenética dos rituais
não impede a sobrevivência do logos que se quer
preponderante.
Luara Learth (Corpos Informáticos)
em
experimento para criação de performances.
Brasília. 2010. Foto: Márcio H. Mota.
Era uma vez
Performances, por vezes, tendem ao
orgasmo.
São
elas obras de arte?
Diariamente,
assassinos monstruosos alimentam as colunas policiais. Um discurso sobre a arte,
sobre uma arte, oferece contradição.
Em
um conjunto dinâmico: a verdade e seu
contrário.
A verdade de um
poema não existe sem a textura deste […]
sem a totalidade de
seus elementos (Jimenez, 1983, p. 230).
Ação e
texto se caçam mutuamente.
A linguagem corporal dificilmente
se tornará linguagem arcaica e comprometida.
Como proceder, para a execução deste texto,
se toda ação, toda performance artística
não pode ser traduzida,
em sua totalidade, em um texto ou em uma
obra plástica, estática, estável, imutável? Não se explicará por um discurso,
em seguida ilustrado, qualquer ação efêmera que busca tanger afectos e perceptos (Deleuze e Guattari, 1991). Não se bordará um discurso em torno de imagens.
Bundalelê coletivo na entrega das Bianais
de Mamutte
para o Corpos Informáticos, 2012
Para falar de performance,
precisamos encontrar
estratégias de escrita como encontramos, na prática,
estratégias de ação: espontaneidade e improviso. Aqui, nossas estratégias
serão, certamente, particulares e diferentes das utilizadas para as ações: manias,
ações, corpos, carne, calor e batimentos de coração, pulsões,
impulsões de linguagens que não se identificam com a
escrita.
Análise e
interrogação de experiências vividas
se referem a um passado e não podem estar vivas.
Este texto pode ser considerado arte: uma obra de arte
única, pontual e efêmera?
Efêmera no sentido
de que ela teme a morte, e ela deseja a própria morte: única maneira para o
artista de por um ponto final,
de poder sempre recomeçar do início.
Cada
performance faz viver inteiramente um ser, a cada vez, inédito.
Seu fim o liberta para outra vida.
Escrever um texto sobre
performance é uma contradição. Um sistema fechado e reconhecível é incompatível
com a performance. As ações são irredutíveis a palavras. Essa arte não quer
erigir um sistema, não quer se tornar um método, não funda escola. Os atuais impressionistas
de Montmartre são extemporâneos.
O fato
mesmo de se exprimir por uma linguagem envelhecida pela repetição, uma
linguagem aprisionada, contradiz e freia, quer queiramos ou não, a prática
artística. Não realizamos, na arte, ato de linguagem. Nenhum resultado é procurado
(mentira). Performances não são sistemas. Elas não são nem óptimas nem
péssimas.
E se,
como Oswald de Andrade, agirmos “contra a memória fonte do hábito”, o que seria
do tempo?
O tempo se traça na memória que se enraíza.
São mar(ia-sem-ver)gonhas
órfãs, pedaços de nós.
Tudo está aparentemente
‘desterritorializado’ como quer a moda.
Ao mesmo tempo, territórios ancorados em
cada um de nós existem inexoráveis, insuspeitáveis: memórias.
Apesar disso, sabemos que todas as evidências são perigosas.
Adão e
Eva deixaram a eternidade e a felicidade pelo efêmero. Comendo o fruto
proibido,
eles matam a beata inocência da animalidade da natureza
do paraíso terrestre e conhecem as leis que hominizam.
A
durabilidade formal procurada por obras de arte é o reflexo e a reprodução de
um sistema fundado sobre o conceito de propriedade. Aquele que teme o novo
mistifica o passado.
DESPARASITAR O FUTURO
ação efêmera
presença-consciência
da morte
vida ínfima
desejo infinito
Uma obra de arte que
procura a perenidade, por esse fato mesmo, reafirma sua fragilidade e sua
impotência diante da realidade. Qual é essa morte tão temida? O medo da morte
formal da obra vem do medo da morte de seu conteúdo. Mas qual é esse conteúdo
tão frágil?
Uma
performance finalizada carrega consigo um eco ensurdecedor de um gozo nunca
mais retomável. Frustrar o gozo, permanecer no desejo, incita.
A família é sagrada
Capotando
Kombi em laboratório do Corpos Informáticos.
Da
esquerda para a direita: Maria Eugênia,
Camila Soato, Luara Learth, Diego Azambuja, Mariana Brites, Bia
Medeiros, Mateus de Carvalho Costa. Foto: Márcio H. Mota.
Qual destas frases você já disse?
‑ não quero mais namorar com você
‑ meu tempo está se esgotando
‑é uma questão de honra
‑ a família é sagrada.
A
percepção não consegue alcançar o real em toda sua essência, daí resulta a necessidade
de se pensar essa realidade; criam-se conceitos, concebe-se o real para suprir
a insuficiência da percepção. Se a percepção alcançasse o real em toda sua pluralidade,
talvez não fosse necessário conceituar. O conceito visa eliminar as ilusões e
as contradições que nos deixam a percepção, sistematizando o real. Acostumamo-nos
a pensar por conceitos fixos em detrimento da fluidez da mutabilidade da
realidade. A atual compreensão cada vez mais presente do tempo não mais nos
deixará nessa estabilidade forjada com a performance. O tempo, como elemento
estético, faz definitivamente parte da linguagem artística.
Este texto tecido quotidianamente insiste, persiste, perfura, lá onde o
lado sombrio do silêncio me abre o único espaço solitário que resta de minhas
jornadas estonteantes. Persigo. Os batimentos das teclas. Meus dedos inchados
tocam e pesam quando as palavras fervem. Meus dedos me enervam quando o pensamento
flutua para outros territórios.
Desejo de delírio e
essa corrente presa às minhas entranhas que se deixam tomar pelo envelhecimento
inadiável. Texto refogado. Antenas continuamente transmitindo. Receptores
diacrônicos perdem a consciência do tempo real. Por vezes embarco. As
embarcações não deixam traços sobre o fluido. A volúpia do texto me parece de
toda forma frígida. Minha carne se incha sobre essa cadeira desconfortável e
instável. A barriga se gaseifica de outras fermentações. Desejo de delírio nas
pontas embrutecidas dos dedos. Prazer negado pelo rasgo desse corpo estático,
imóvel, persistente. Texto-obsessão e, como tal, desejo e negação.
A angústia que sinto sei de onde vem,
preciso levantar, me satisfazer sexualmente. Depois, talvez voltar, voltar para
essa mesa que machuca meu braço. Não voltar, seria possível? Não voltar para a
academia. Deixar-me deslizar pelas areias quentes dos trópicos e desistir.
Os israelenses e libaneses, os palestinos,
o povo do Iraque, a Síria, Fukushima... Para que escrever sobre arte?
Aquilo que nós
chamamos ‘arte’, no Ocidente, é apenas um aspecto encolhido e pequeno de uma
imensa abertura, de uma experimentação da realidade pelo imaginário do qual nós
muitas vezes não vemos a amplidão (Duvignaud, 1973, p. 149).
Performance durante abertura
da exposição Corpos Informáticos na FUNARTE-SP, 2011. Em performance: Maria Eugênia
Matricardi, Diego Azambuja e Adauto Soares. Foto: Márcio H. Mota.
Tempo. Meio indefinido onde parecem se
desenrolar irreversivelmente as existências em suas mudanças, os eventos e os
fenômenos em suas sucessões (Robert, 1967).
Aristóteles
categorizou os diferentes aspectos em que a realidade se nos apresenta,
dividindo-os em substância e acidentes, sendo que tempo e movimento seriam acidentes que se acrescentariam como
atributos a algo de permanente que seria o objeto mesmo, idêntico a si.
O tempo foi
considerado base do devir.
Santo Agostinho,
com sua análise do tempo no XI Livro das
Confissões, se tornou célebre. Ele não se satisfez descrevendo a
faculdade da consciência (memória) constitutiva da experiência do tempo,
mas examinou radicalmente a constituição fundamental do ser do homem como sendo
uma essência temporal em relação com a eternidade da verdade.
Santo Agostinho
converteu totalmente a antiga concepção do tempo ligada ao cosmos, dando a ele
a dimensão de uma consciência do tempo, interna e subjetiva.
Se considerarmos o tempo como alguma coisa
dada objetivamente, ele se decompõe em momentos distintos: o passado não é
mais, o futuro não é ainda e o presente se reduz ao ínfimo ponto de passagem do
passado ao futuro. Temos, portanto, uma consciência da duração, uma experiência
do tempo, e dispomos de uma medida de tempo. Isso só é possível se a consciência
humana tiver a faculdade de conservar na memória, como imagens, os traços que a
impressão sensível passageira deixam atrás dela. A maneira como as imagens são
tornadas presentes, no espírito, permite distinguir três dimensões do tempo: “O
presente do passado é a memória; o presente do presente é a visão; o presente
do futuro é a espera”.
Por isso, não é
justo dizer que o passado e o futuro são só a experiência do presente. Esta existe
verdadeiramente acompanhada, no espírito, de uma representação do passado e do
futuro. Na alma, nós medimos o tempo que nos é assim dado como uma ‘distensão
da alma’ (distentio animi). No limite
dessa distensão, para o passado e o futuro, as imagens se escurecem cada vez
mais. Como o espírito produz dessa maneira as dimensões temporais, a
interioridade do homem é uma espera perpétua.
A originalidade de
Santo Agostinho foi a de transformar a visão platoniciana do tempo, definido
como caída (chute), imagem imóvel e
pervertida da eternidade, em uma justificativa do tempo como espaço de criação
e de santificação, onde a existência pode se salvar, pois ela está ligada à essência
divina que a criou, retirando-a do nada. O nada (le néant) sempre ameaçando e provocando desejo. O ser nos tira do
nada e nos incita a ser, a nos liberar do mal induzido pelo fluxo do tempo.
A experiência da
temporalidade própria orienta o homem para o imortal. O tempo foi considerado
realidade interior.
Newton acreditava ser o
tempo absoluto. Para ele, o tempo corre
linearmente, numa linha única, vinda do passado e perdendo-se no futuro, uniforme
através de todas as partes do universo e independente da matéria e do espaço.
Kant
definiu o tempo como categoria
transcendental.
Kant pede
a introdução de um novo composto no cogito,
aquela que Descartes havia repugnado: precisamente o tempo, pois é somente no
tempo que minha existência indeterminada se encontra determinável. Kant reintroduz o
tempo no cogito, mas um tempo outro que aquele da anterioridade platoniciana.
Criação de conceito. Ele faz do tempo um componente de um novo cogito, mas na condição de fornecer por
sua vez um novo
conceito de tempo: o tempo se torna forma de interioridade, com três
componentes, sucessão, mas também simultaneidade e permanência. O
que implica ainda um novo conceito de espaço que não pode ser definido pela simultaneidade
e se torna forma de exterioridade (Deleuze e Guattari, 1991, p. 35).
Marinetti
já dizia que “o tempo e o espaço morreram ontem”.
Para
Annatereza Fabris (apud Marinetti, 1935): Admirar um quadro antigo uma concepção
estética de criação alheia ao novo ritmo da vida mundial, a descoberta da quarta
dimensão em que espaço e tempo se tornam dimensão única, a do fazer, a da experiência
imediata do indivíduo que não se defronta mais com as categorias ontológicas e
sim com uma determinada vivência experimentada num tempo e num
espaço simultâneos (Fabris, 1987, p. 62).
Kierkegaard (1935, p. 91-94)
O
instante significa o presente como coisa que não tem nem passado, nem futuro (avenir);
pois é aí justamente a imperfeição da vida sensual. O eterno significa também o
presente que não tem nem passado
nem
futuro (avenir), mas isso mesmo é sua perfeição. [...] O instante não é
uma pura categoria do tempo, pois o próprio do tempo é somente de passar também
o tempo, se for preciso defini-lo por alguma categoria aí se revelando, é
passado. Se ao contrário o tempo e a eternidade devem se tocar, só pode ser no
tempo, e nos vemos agora diante do instante.
O
instante é esse equívoco onde o tempo e a eternidade se tocam, e é esse contato
que coloca o conceito do temporal, onde o tempo não cessa de rejeitar a eternidade
e onde a eternidade não cessa de penetrar o tempo.
Se
o instante é colocado, então a eternidade existe.
Maias aos budistas
consideravam o tempo circular e repetitivo; as vidas, talvez, revivendo através
da reencarnação. Na sociedade industrial, o tempo linear prevalece, tornando-se
a base de todo planejamento econômico, científico e político.
Einstein
dizia ser o tempo relativo. Já para Stephen Hawking, o tempo talvez fosse até imaginário
Deleuze
e Guattari (1991):
Nem
a filosofia nem a ciência se satisfazem de uma sucessão temporal linear. Mas,
em vez de um tempo estratigráfico que exprime o antes e o depois em uma ordem de
superposições, a ciência revela um tempo propriamente serial, ramificado onde o
antes (o precedente) designa sempre bifurcações e rupturas a vir, e o depois,
reencadeamentos retroativos: daí resulta um todo outro andamento do progresso
científico [...].
A
arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva. Ela conserva e se
conserva em si (quid juris?), no entanto, de fato, ela não dura mais que
seu suporte e seus materiais (quid facti?), pedra, tela, cor química
etc. [...]
Mesmo
que o material só durasse alguns segundos, ele daria à sensação o poder de
existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste com essa curta duração.
[...]
Abrir ou criar uma fenda, igualar o infinito. Talvez seja o próprio da
arte passar pelo finito para reencontrar, dar de novo o infinito.
Dufrenne (1980, p. 17):
Sem dúvida, a obra improvisada (happening, fogos de artifício, dança land-art) não deixa vestígios, a não ser
na memória dos participantes; mas a verdade da obra está na experiência de sua
presença, e não naquilo que torna essa experiência repetível. (vinha falando de tempo e agora de arte, falta ligação)
Moles
e Rohmer (1977, p. 239):
Um
dos valores essenciais do ato pontual será então sua capacidade de chamar e de
reter a atenção do espectador, é o que nós chamamos de ‘força de fascinação’
que transfere o elemento da obra de um elemento proposto dentro do ambiente em
nível de um estímulo de ação no jogo empreendido pelo espectador com o artista.
Jankelevitch
(1977):
[...]
aquilo que não vive não morre [...] a eterna vida de uma flor em estufa ou de
um rochedo, essa vida é uma eterna morte [...] a morte que é a verdadeira vida.
[...]
Poder
sofrer, poder morrer são, à maneira desses signos de vitalidade, sintomas de
mudança vital e do momento vital.
[...]
Uma vida que não aceita absolutamente a morte e que pretende ser desde já
eterna é a inimiga da vida: esta vida é uma sabotagem da existência real.
Virilio
(1993, p. 93):
‘Se
alguma coisa fosse inesquecível, nós não poderíamos pensar em mais nada’,
explicava Jorge Luis Borges... Efetivamente, a memória, eletrônica ou não,
jamais foi algo mais do que a fixação, uma fixação que pode se tornar
neurótica, patológica, sem as potencialidades projetivas do imaginário, imaginário
cuja condição de possibilidade é o esquecimento, a ausência de reminiscência.
Silva (1992):
O
trabalho de expressão é tenso ‑ e até mesmo agônico ‑ porque a linguagem é em
si um produto da inteligência, naturalmente apto apenas para exprimir aquilo
que percebemos habitualmente. É a imprecisão da linguagem natural, a que Bergson
denomina mobilidade dos significados, que possibilita o trânsito entre as significações
[...].
A
arte é a descrição da realidade do ponto de vista da duração, que não é, já se
vê, um ponto de vista como outro qualquer, mas um ponto de vista que assume a
realidade desde o seu núcleo temporal [...].
E
se a obra pressupõe a travessia da transitoriedade para buscar o tempo em estado
puro, ela se colocará também, do ponto de vista da elaboração, numa situação temporalmente
indeterminada, entre dois horizontes, o do começo, numa abertura indefinida
para o antes, e o do fim, numa perspectiva indefinidamente aberta para o
depois. E há que ser assim, posto
que narrar o tempo não pode envolver a pretensão de encerrá-lo nos limites da
obra escrita, e sim assumi-lo como meio envolvente, em que se transita e em
relação ao qual o começo e o fim não são instantes absolutos, mas,
respectivamente, paisagem de origem e nostalgia de completude.
Umberto Eco (1965), em De la Somme à Finnegans Wake, afirma que Finnegans Wake, que
considera uma obra aberta, possui a poética de uma obra-universo, onde a
dimensão ‘tempo’ tem lugar da mesma forma que as três dimensões espaciais,
dando à obra uma nova espessura. E para melhor situar essa nova espessura dada
à obra pelo tempo, Eco distingue o tempo da leitura e o tempo
narrativo que institui diferenças entre tempo da intriga e tempo da ação,
tempo real e tempo psicológico, tempo de duração do espetáculo e tempo da
história. Tempos existentes em obras não necessariamente abertas. Em uma obra
aberta, como Finnegans Wake, teríamos o tempo durante o qual se arrumam
as releituras sucessivas que condicionam o devir da fisionomia da obra:
um tempo que modifica a obra, um tempo de evolução, uma espécie de mudança
fisionomia da obra. Da fisionomia A até
sua fisionomia B, e assim sucessivamente,
sem que essa evolução tenha fim, nem as possibilidades, uma conclusão.
Preparando Kombi para puxar. Na foto: Mateus
de Carvalho Costa, Maria Eugênia e Camila Soato. Foto: Márcio H. Mota.
Referências
bibliográficas
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire. Un
poète lyrique à l'ápogée du capitalisme. Paris: Petite Bibliothèque Payot,
1974.
DELEUZE,
G. e GUATTARI, F. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.
DELEUZE e
GUATTARI. Mil Platôs 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
DUFRENNE, M. A obra de arte. Encyclopaedia
Universalis. Paris, 1980. p. 13-18. v. 17.
DUVIGNAUD, J. Fêtes et civilizations. Paris:
Librairie Weber, 1973.
ECO, Umberto. De la Somme à Finnegans Wake. Paris: Seuil, 1965.
FABRIS, A Futurismo: uma poética da
modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1987.
JANKELEVITCH, V. La mort. Paris: Flammarion, 1977.
JIMENEZ, M. Vers une esthétique
négative. Adorno et la modernité. Paris: Le Sycomore, 1983.
KIERKEGAARD, S. Le concept
de l’angoisse. Paris: Gallimard, 1935.
Kunzmann, P.; Burkard,
F.-P.; Wieldmann, F. Atlas de philosophie. Paris: La Pochotèque, 1993.
MOLES, A. e ROHMER, E. Théorie
des actes. Vers une écologie des actions. Paris: Casterman, 1977.
ROBERT, P. Dictionnaire Le Petit Robert. Paris: Le Robert, 1967.
SILVA,
F. L. Bergson, Proust ‑ tensões do tempo.
In: NOVAES, A. (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
VIRILIO, P. O espaço crítico e as
perspectivas do tempo real. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
[1] Essas notas foram
tomadas há muito tempo e algumas fontes se perderam. Grande parte da pesquisa
foi realizada no livro de Kunzmann, P.; Burkard, F-P.; Wieldmann, F. (1993).