sexta-feira, 2 de maio de 2014

Performance artística e tempo



Performance artística e tempo

 publicado inicialmente em Tempo e Performance
MEDEIROS, M.B., MONTEIRO, M.F. Brasília: PPG-Arte/UnB, 2007.

Maria Beatriz de Medeiros


Mácula






Composição 
sobre cartaz 
publicitário rasgado. 
Paris, 1986



















A dilatação do tempo, 
que insiste no presente de nossas relações,
permanece estrangeira a essa pontualidade do instante (Luce Irigaray).






Era uma vez uma mulher que se divertia em correr perigos mortais.
Essa mulher era artista e praticava, sobretudo, a linguagem artística performance.
 Realizar um trabalho teórico, texto lacrado a sete chaves, sobre uma prática
efêmera, promete definitivamente sepultá-la.
Assim, este texto tentará transmitir a impossibilidade de prever o que se segue a partir do que precede, tal como em performances onde reina o improviso.
Este é descendente de um combate entre a inteligência,
que se exprime por conceitos descobrindo ligações causais, analogias etc.,
e a galhofa:
de prazer em prazer, de anedota em anedota.
Assim, o instinto fugirá das demonstrações lineares entediantes.
Instinto de sobrevivência, a sobrevivência do trabalho artístico.
O texto rabiscado tenta o erro, exprime seus limites, sua nocividade.

Beijem-nos,
antes que o extrato de nossas ações se torne figura de retórica.
       
A palavra é a cegueira dos movimentos?

         O corpo é o ornamento ou o espaço da/de realização?

Combate.

No tempo presente,
só o corpo-carne, o corpo-entranhas, a matéria viva, o palpável é ritmo.


Desenho (17/21 cm). 2010.

Nenhum retorno possível.


nós ‑ qual é a parte ‑
         seres anfíbios ‑ da chance, se a IMPETUOSIDADE ‑
nós estamos CONSCIENTEs ‑ do tocar é guiada pela
da futilidade ‑ odor impudico
desse jogodaquilo que resta de
(des)ordem do desejo?



ESTE TEXTO
TRATA
MALTRATA
TRAI
a PERFORMANCE.


Aquele que constrói um discurso sobre uma ação a aniquila.
No texto, a performance é esfolada.
Fora de seu tempo, ela é esvaziada e enclausurada
em reproduções fotográficas ou vídeos.
       
         Pensar a performance artística e seu tempo é falar de fragmentos de memória, buscar religar artificialmente momentos ‑ escrita espalhada na desordem do quotidiano. Nenhum ponto de vista esgota a pluralidade/diversidade do mundo dessa (não) linguagem. Em geral, a performance secreta um desejo de perturbar a ordem de quotidianos enfeitiçados pela regularidade. Ser volúvel e contraditório. Borboletear essa sopa de culturas e não fugir do carnaval. Coquetel racial. Consciência epidérmica.
Ser antropófago e driblar a cultura ‘sorbonnardiana’.


Performance Materfagia. Rio de Janeiro, 1985.

O paraíso é apenas a nostalgia da unidade.

        A performance é processo (im)puro.
E se dela falarmos, estaremos sendo sempre parciais:
cada um de sua perspectiva pouca.
Essa arte é um reflexo de percepções de um imaginário particular, tudo isso em um momento único e preciso.
A palavra, que pretende a compreensão universal de uma ação artística efêmera, ou não, será sempre geradora de direito de exclusão.
 Durante o carnaval,
todo disfarce é possível nas avenidas fervilhantes,
abertas aos estrangeiros e a muitos brasileiros que não sabem sambar.
No entanto, graças a uma norma autocêntrica que quer que a cultura européia seja a cultura universal,
nós seremos sempre (o) outro, nós estaremos sempre do outro lado da minoria adequada ao ideal: à margem.
Posição privilegiada no marasmo.


verdades locais,
convenções momentâneas,
transformações contínuas,
domínios parciais,
relações variáveis.

        
Como nossa escrita pode ir além do que nosso corpo pode viver?

         Se você tem uma idéia incrível,
         é melhor fazer uma canção,
está provado
que só é possível
filosofar em alemão
(Caetano Veloso).
       
        A filosofia é somente uma velha tia que veio nos visitar e se instalou apesar de nossos desejos.
As teorias filosóficas, assim como a percepção e o senso comum,
Podem imobilizar o real, paralisar o devir e ainda conferir a esse
conhecimento artificial e esquemático o prestígio da
especulação metafísica.

Quem somos (o) nós (da escrita)?
A ambigüidade é nossa parceira.
Beijem-nos,
 antes que o substrato de ações artísticas se torne figura de retórica!

A dança frenética dos rituais
não impede a sobrevivência do logos que se quer preponderante.



Luara Learth (Corpos Informáticos) 
em experimento para criação de performances. 
Brasília. 2010. Foto: Márcio H. Mota.

        












Era uma vez

        Performances, por vezes, tendem ao orgasmo.
São elas obras de arte?
Diariamente, assassinos monstruosos alimentam as colunas policiais. Um discurso sobre a arte, sobre uma arte, oferece contradição.
Em um conjunto dinâmico: a verdade e seu contrário.
       
A verdade de um poema não existe sem a textura deste […]
sem a totalidade de seus elementos (Jimenez, 1983, p. 230).

         Ação e texto se caçam mutuamente.
A linguagem corporal dificilmente
se tornará linguagem arcaica e comprometida.
Como proceder, para a execução deste texto,
se toda ação, toda performance artística não pode ser traduzida,
em sua totalidade, em um texto ou em uma obra plástica, estática, estável, imutável? Não se explicará por um discurso, em seguida ilustrado, qualquer ação efêmera que busca tanger afectos e perceptos (Deleuze e Guattari, 1991). Não se bordará um discurso em torno de imagens.


Bundalelê coletivo na entrega das Bianais de Mamutte
para o Corpos Informáticos, 2012

        Para falar de performance, precisamos encontrar
estratégias de escrita como encontramos, na prática, estratégias de ação: espontaneidade e improviso. Aqui, nossas estratégias serão, certamente, particulares e diferentes das utilizadas para as ações: manias, ações, corpos, carne, calor e batimentos de coração, pulsões,
impulsões de linguagens que não se identificam com a escrita.

         Análise e interrogação de experiências vividas
se referem a um passado e não podem estar vivas.
Este texto pode ser considerado arte: uma obra de arte única, pontual e efêmera?
 Efêmera no sentido de que ela teme a morte, e ela deseja a própria morte: única maneira para o artista de por um ponto final,
de poder sempre recomeçar do início.
Cada performance faz viver inteiramente um ser, a cada vez, inédito.
Seu fim o liberta para outra vida.

        Escrever um texto sobre performance é uma contradição. Um sistema fechado e reconhecível é incompatível com a performance. As ações são irredutíveis a palavras. Essa arte não quer erigir um sistema, não quer se tornar um método, não funda escola. Os atuais impressionistas de Montmartre são extemporâneos.

         O fato mesmo de se exprimir por uma linguagem envelhecida pela repetição, uma linguagem aprisionada, contradiz e freia, quer queiramos ou não, a prática artística. Não realizamos, na arte, ato de linguagem. Nenhum resultado é procurado (mentira). Performances não são sistemas. Elas não são nem óptimas nem péssimas.
        
         E se, como Oswald de Andrade, agirmos “contra a memória fonte do hábito”, o que seria do tempo?
O tempo se traça na memória que se enraíza.
São mar(ia-sem-ver)gonhas órfãs, pedaços de nós.
        
Tudo está aparentemente ‘desterritorializado’ como quer a moda.
Ao mesmo tempo, territórios ancorados em cada um de nós existem inexoráveis, insuspeitáveis: memórias.
Apesar disso, sabemos que todas as evidências são perigosas.

         Adão e Eva deixaram a eternidade e a felicidade pelo efêmero. Comendo o fruto proibido,
eles matam a beata inocência da animalidade da natureza do paraíso terrestre e conhecem as leis que hominizam.

         A durabilidade formal procurada por obras de arte é o reflexo e a reprodução de um sistema fundado sobre o conceito de propriedade. Aquele que teme o novo mistifica o passado.

DESPARASITAR O FUTURO
       
ação efêmera
presença-consciência da morte
vida ínfima
desejo infinito

        Uma obra de arte que procura a perenidade, por esse fato mesmo, reafirma sua fragilidade e sua impotência diante da realidade. Qual é essa morte tão temida? O medo da morte formal da obra vem do medo da morte de seu conteúdo. Mas qual é esse conteúdo tão frágil?

         Uma performance finalizada carrega consigo um eco ensurdecedor de um gozo nunca mais retomável. Frustrar o gozo, permanecer no desejo, incita.

A família é sagrada




Capotando Kombi em laboratório do Corpos Informáticos.
Da esquerda para a direita: Maria Eugênia,  Camila Soato, Luara Learth, Diego Azambuja, Mariana Brites, Bia Medeiros, Mateus de Carvalho Costa. Foto: Márcio H. Mota.


Qual destas frases você já disse?
  ‑ não quero mais namorar com você 
‑ meu tempo está se esgotando
‑é uma questão de honra
‑ a família é sagrada.


A percepção não consegue alcançar o real em toda sua essência, daí resulta a necessidade de se pensar essa realidade; criam-se conceitos, concebe-se o real para suprir a insuficiência da percepção. Se a percepção alcançasse o real em toda sua pluralidade, talvez não fosse necessário conceituar. O conceito visa eliminar as ilusões e as contradições que nos deixam a percepção, sistematizando o real. Acostumamo-nos a pensar por conceitos fixos em detrimento da fluidez da mutabilidade da realidade. A atual compreensão cada vez mais presente do tempo não mais nos deixará nessa estabilidade forjada com a performance. O tempo, como elemento estético, faz definitivamente parte da linguagem artística.

Este texto tecido quotidianamente insiste, persiste, perfura, lá onde o lado sombrio do silêncio me abre o único espaço solitário que resta de minhas jornadas estonteantes. Persigo. Os batimentos das teclas. Meus dedos inchados tocam e pesam quando as palavras fervem. Meus dedos me enervam quando o pensamento flutua para outros territórios.

Desejo de delírio e essa corrente presa às minhas entranhas que se deixam tomar pelo envelhecimento inadiável. Texto refogado. Antenas continuamente transmitindo. Receptores diacrônicos perdem a consciência do tempo real. Por vezes embarco. As embarcações não deixam traços sobre o fluido. A volúpia do texto me parece de toda forma frígida. Minha carne se incha sobre essa cadeira desconfortável e instável. A barriga se gaseifica de outras fermentações. Desejo de delírio nas pontas embrutecidas dos dedos. Prazer negado pelo rasgo desse corpo estático, imóvel, persistente. Texto-obsessão e, como tal, desejo e negação.
A angústia que sinto sei de onde vem, preciso levantar, me satisfazer sexualmente. Depois, talvez voltar, voltar para essa mesa que machuca meu braço. Não voltar, seria possível? Não voltar para a academia. Deixar-me deslizar pelas areias quentes dos trópicos e desistir.
Os israelenses e libaneses, os palestinos, o povo do Iraque, a Síria, Fukushima... Para que escrever sobre arte?

Aquilo que nós chamamos ‘arte’, no Ocidente, é apenas um aspecto encolhido e pequeno de uma imensa abertura, de uma experimentação da realidade pelo imaginário do qual nós muitas vezes não vemos a amplidão (Duvignaud, 1973, p. 149).



Performance  durante abertura da exposição Corpos Informáticos na FUNARTE-SP, 2011. Em performance: Maria Eugênia Matricardi, Diego Azambuja e Adauto Soares. Foto: Márcio H. Mota.

Tempo[1]

Tempo. Meio indefinido onde parecem se desenrolar irreversivelmente as existências em suas mudanças, os eventos e os fenômenos em suas sucessões (Robert, 1967).

Aristóteles categorizou os diferentes aspectos em que a realidade se nos apresenta, dividindo-os em substância e acidentes, sendo que tempo e movimento seriam acidentes que se acrescentariam como atributos a algo de permanente que seria o objeto mesmo, idêntico a si.
O tempo foi considerado base do devir.

Santo Agostinho, com sua análise do tempo no XI Livro das Confissões, se tornou célebre. Ele não se satisfez descrevendo a faculdade da consciência (memória) constitutiva da experiência do tempo, mas examinou radicalmente a constituição fundamental do ser do homem como sendo uma essência temporal em relação com a eternidade da verdade.
Santo Agostinho converteu totalmente a antiga concepção do tempo ligada ao cosmos, dando a ele a dimensão de uma consciência do tempo, interna e subjetiva.
Se considerarmos o tempo como alguma coisa dada objetivamente, ele se decompõe em momentos distintos: o passado não é mais, o futuro não é ainda e o presente se reduz ao ínfimo ponto de passagem do passado ao futuro. Temos, portanto, uma consciência da duração, uma experiência do tempo, e dispomos de uma medida de tempo. Isso só é possível se a consciência humana tiver a faculdade de conservar na memória, como imagens, os traços que a impressão sensível passageira deixam atrás dela. A maneira como as imagens são tornadas presentes, no espírito, permite distinguir três dimensões do tempo: “O presente do passado é a memória; o presente do presente é a visão; o presente do futuro é a espera”.
Por isso, não é justo dizer que o passado e o futuro são só a experiência do presente. Esta existe verdadeiramente acompanhada, no espírito, de uma representação do passado e do futuro. Na alma, nós medimos o tempo que nos é assim dado como uma ‘distensão da alma’ (distentio animi). No limite dessa distensão, para o passado e o futuro, as imagens se escurecem cada vez mais. Como o espírito produz dessa maneira as dimensões temporais, a interioridade do homem é uma espera perpétua.
A originalidade de Santo Agostinho foi a de transformar a visão platoniciana do tempo, definido como caída (chute), imagem imóvel e pervertida da eternidade, em uma justificativa do tempo como espaço de criação e de santificação, onde a existência pode se salvar, pois ela está ligada à essência divina que a criou, retirando-a do nada. O nada (le néant) sempre ameaçando e provocando desejo. O ser nos tira do nada e nos incita a ser, a nos liberar do mal induzido pelo fluxo do tempo.
A experiência da temporalidade própria orienta o homem para o imortal. O tempo foi considerado realidade interior.

Newton acreditava ser o  tempo absoluto. Para ele, o tempo corre linearmente, numa linha única, vinda do passado e perdendo-se no futuro, uniforme através de todas as partes do universo e independente da matéria e do espaço.

Kant definiu o tempo como categoria transcendental.
Kant pede a introdução de um novo composto no cogito, aquela que Descartes havia repugnado: precisamente o tempo, pois é somente no tempo que minha existência indeterminada se encontra determinável. Kant reintroduz o tempo no cogito, mas um tempo outro que aquele da anterioridade platoniciana. Criação de conceito. Ele faz do tempo um componente de um novo cogito, mas na condição de fornecer por sua vez um novo conceito de tempo: o tempo se torna forma de interioridade, com três componentes, sucessão, mas também simultaneidade e permanência. O que implica ainda um novo conceito de espaço que não pode ser definido pela simultaneidade e se torna forma de exterioridade (Deleuze e Guattari, 1991, p. 35).

Marinetti já dizia que “o tempo e o espaço morreram ontem”.
Para Annatereza Fabris (apud Marinetti, 1935): Admirar um quadro antigo uma concepção estética de criação alheia ao novo ritmo da vida mundial, a descoberta da quarta dimensão em que espaço e tempo se tornam dimensão única, a do fazer, a da experiência imediata do indivíduo que não se defronta mais com as categorias ontológicas e sim com uma determinada vivência experimentada num tempo e num espaço simultâneos (Fabris, 1987, p. 62).


Kierkegaard (1935, p. 91-94)

O instante significa o presente como coisa que não tem nem passado, nem futuro (avenir); pois é aí justamente a imperfeição da vida sensual. O eterno significa também o presente que não tem nem passado
nem futuro (avenir), mas isso mesmo é sua perfeição. [...] O instante não é uma pura categoria do tempo, pois o próprio do tempo é somente de passar também o tempo, se for preciso defini-lo por alguma categoria aí se revelando, é passado. Se ao contrário o tempo e a eternidade devem se tocar, só pode ser no tempo, e nos vemos agora diante do instante.
O instante é esse equívoco onde o tempo e a eternidade se tocam, e é esse contato que coloca o conceito do temporal, onde o tempo não cessa de rejeitar a eternidade e onde a eternidade não cessa de penetrar o tempo.
Se o instante é colocado, então a eternidade existe.

Maias aos budistas consideravam o tempo circular e repetitivo; as vidas, talvez, revivendo através da reencarnação. Na sociedade industrial, o tempo linear prevalece, tornando-se a base de todo planejamento econômico, científico e político.

Einstein dizia ser o tempo relativo. Já para Stephen Hawking, o tempo talvez fosse até imaginário

Deleuze e Guattari (1991):
Nem a filosofia nem a ciência se satisfazem de uma sucessão temporal linear. Mas, em vez de um tempo estratigráfico que exprime o antes e o depois em uma ordem de superposições, a ciência revela um tempo propriamente serial, ramificado onde o antes (o precedente) designa sempre bifurcações e rupturas a vir, e o depois, reencadeamentos retroativos: daí resulta um todo outro andamento do progresso científico [...].
A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva. Ela conserva e se conserva em si (quid juris?), no entanto, de fato, ela não dura mais que seu suporte e seus materiais (quid facti?), pedra, tela, cor química etc. [...]
Mesmo que o material só durasse alguns segundos, ele daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste com essa curta duração.
[...] Abrir ou criar uma fenda, igualar o infinito. Talvez seja o próprio da arte passar pelo finito para reencontrar, dar de novo o infinito.

Dufrenne (1980, p. 17):

Sem dúvida, a obra improvisada (happening, fogos de artifício, dança land-art) não deixa vestígios, a não ser na memória dos participantes; mas a verdade da obra está na experiência de sua presença, e não naquilo que torna essa experiência repetível. (vinha falando de tempo e agora de arte, falta ligação)

Moles e Rohmer (1977, p. 239):
Um dos valores essenciais do ato pontual será então sua capacidade de chamar e de reter a atenção do espectador, é o que nós chamamos de ‘força de fascinação’ que transfere o elemento da obra de um elemento proposto dentro do ambiente em nível de um estímulo de ação no jogo empreendido pelo espectador com o artista.

Jankelevitch (1977):
[...] aquilo que não vive não morre [...] a eterna vida de uma flor em estufa ou de um rochedo, essa vida é uma eterna morte [...] a morte que é a verdadeira vida. [...]
Poder sofrer, poder morrer são, à maneira desses signos de vitalidade, sintomas de mudança vital e do momento vital.
[...] Uma vida que não aceita absolutamente a morte e que pretende ser desde já eterna é a inimiga da vida: esta vida é uma sabotagem da existência real.

Virilio (1993, p. 93):

‘Se alguma coisa fosse inesquecível, nós não poderíamos pensar em mais nada’, explicava Jorge Luis Borges... Efetivamente, a memória, eletrônica ou não, jamais foi algo mais do que a fixação, uma fixação que pode se tornar neurótica, patológica, sem as potencialidades projetivas do imaginário, imaginário cuja condição de possibilidade é o esquecimento, a ausência de reminiscência.

Silva (1992):

O trabalho de expressão é tenso ‑ e até mesmo agônico ‑ porque a linguagem é em si um produto da inteligência, naturalmente apto apenas para exprimir aquilo que percebemos habitualmente. É a imprecisão da linguagem natural, a que Bergson denomina mobilidade dos significados, que possibilita o trânsito entre as significações [...].
A arte é a descrição da realidade do ponto de vista da duração, que não é, já se vê, um ponto de vista como outro qualquer, mas um ponto de vista que assume a realidade desde o seu núcleo temporal [...].
E se a obra pressupõe a travessia da transitoriedade para buscar o tempo em estado puro, ela se colocará também, do ponto de vista da elaboração, numa situação temporalmente indeterminada, entre dois horizontes, o do começo, numa abertura indefinida para o antes, e o do fim, numa perspectiva indefinidamente aberta para o  depois. E há que ser assim, posto que narrar o tempo não pode envolver a pretensão de encerrá-lo nos limites da obra escrita, e sim assumi-lo como meio envolvente, em que se transita e em relação ao qual o começo e o fim não são instantes absolutos, mas, respectivamente, paisagem de origem e nostalgia de completude.

Umberto Eco (1965), em De la Somme à Finnegans Wake, afirma que Finnegans Wake, que considera uma obra aberta, possui a poética de uma obra-universo, onde a dimensão ‘tempo’ tem lugar da mesma forma que as três dimensões espaciais, dando à obra uma nova espessura. E para melhor situar essa nova espessura dada à obra pelo tempo, Eco distingue o tempo da leitura e o tempo narrativo que institui diferenças entre tempo da intriga e tempo da ação, tempo real e tempo psicológico, tempo de duração do espetáculo e tempo da história. Tempos existentes em obras não necessariamente abertas. Em uma obra aberta, como Finnegans Wake, teríamos o tempo durante o qual se arrumam as releituras sucessivas que condicionam o devir da fisionomia da obra: um tempo que modifica a obra, um tempo de evolução, uma espécie de mudança fisionomia da obra. Da fisionomia A até sua fisionomia B, e assim sucessivamente, sem que essa evolução tenha fim, nem as possibilidades, uma conclusão.


Preparando Kombi para puxar. Na foto: Mateus de Carvalho Costa, Maria Eugênia e Camila Soato. Foto: Márcio H. Mota.
  
Referências bibliográficas
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire. Un poète lyrique à l'ápogée du capitalisme. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1974.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.
DELEUZE e GUATTARI. Mil Platôs 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
DUFRENNE, M. A obra de arte. Encyclopaedia Universalis. Paris, 1980. p. 13-18. v. 17.
DUVIGNAUD, J. Fêtes et civilizations. Paris: Librairie Weber, 1973.
ECO, Umberto. De la Somme à Finnegans Wake. Paris: Seuil, 1965.
FABRIS, A Futurismo: uma poética da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1987.
JANKELEVITCH, V. La mort. Paris: Flammarion, 1977.
JIMENEZ, M. Vers une esthétique négative. Adorno et la modernité. Paris: Le Sycomore, 1983. 
KIERKEGAARD, S. Le concept de l’angoisse. Paris: Gallimard, 1935.
Kunzmann, P.; Burkard, F.-P.; Wieldmann, F. Atlas de philosophie. Paris: La Pochotèque, 1993.
MOLES, A. e ROHMER, E. Théorie des actes. Vers une écologie des actions. Paris: Casterman, 1977.
ROBERT, P. Dictionnaire Le Petit Robert. Paris: Le Robert, 1967.
SILVA, F. L. Bergson, Proust ‑ tensões do tempo. In: NOVAES, A. (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
VIRILIO, P. O espaço crítico e as perspectivas do tempo real. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.





[1] Essas notas foram tomadas há muito tempo e algumas fontes se perderam. Grande parte da pesquisa foi realizada no livro de Kunzmann, P.; Burkard, F-P.; Wieldmann, F. (1993).

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