terça-feira, 22 de abril de 2014

Performance, charivari e política



Performance, charivari e política[i]

http://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/41695

Maria Beatriz de Medeiros
Universidade de Brasília – UnB, Brasília/DF, Brasil


RESUMO _ Performance, charivari e política - Este texto trata de performance, charivari, isto é, manifestação política de rua com sua desorganização necessária, e política. Para tanto conversa com Amselek, Lacan, Derrida, Agamben, Rancière discutindo o início: aisthesis, tohu-bohu ou linguagem? Real ou realidade? A performance não é ficção nem representação. Ela não apresenta, ela presenta, presentifica, torna presente algo que antes não estava posto. A arte pode ser ficção. A performance à qual nos referimos não é ficção: ela joga na cara o real irredutível a representações.
Palavras-chave: Performance, aisthesis, charivari, manifestação, política

Abstract - Performance, charivari and politics - This paper deals with performance, charivari, ie political demonstration street with your clutter necessary, and politics. For this we discuss with Amselek, Lacan, Derrida, Agamben, Rancière thinking the beginning: aisthesis, tohu-bohu or language? Real or reality? The performance is not fiction or representation. It presents, it presents, makes present, put something that was not there before. Art can be fiction. The performance to which we refer is not fiction: it throws in the face the real irreducible to representations.

Key-words: Performance, aisthesis, charivari, manifestation, politics


Resumé - Performance, charivari et politique - Ce texte traite de la performance, charivari, c'est à dire, manifestation politique dans les rues  avec sa desorganisation nécéssaire, et politique. Pour cela entame une conversation avec Amselek, Lacan, Derrida, Agamben, Rancière pour discuter le début: aisthesis, tohu bohu, ou langage? Réel ou réalité? La performance n'est pas fiction ni représentation. Elle présente, rend présent, rend présent quelque chose qui n´était pas donnée. L'art peut être une fiction. La performance à laquelle nous faison référence n'est pas fiction: il jette sur le visage le réel irréductible à des rerésentations.
Mots-clés : Performance, aisthesis, charivari, manifestation, politique


Meu livro Aisthesis (2005, p. 15) começa afirmando que “No início era a aisthesis”, isto é “estar aberto ao mundo, aberto ao sensível do/no mundo e deixar-se contaminar”. O intento era discutir a afirmação “No início era o verbo”, isto é signo, linguagem, que, pensava eu na época era o texto que abria a Bíblia, dita, Sagrada.

Corpos Informáticos em performance Anadiômena. Lago Paranoá, Brasília, 2014. 
Foto: Bia Medeiros
        
Leio, hoje, em 2013, Alain Amselek, em texto datado de 2010:

Lacan, infelizmente, partiu de uma má leitura da Bíblia afirmando que “No início era o verbo”, que ele transformou, abusivamente, em “No início era a linguagem”, quando a Bíblia hebraica diz, expressamente, “Nos começos era o Caos (tohu-bohu)”, isto é o Vazio da imagem, da estrutura, da substância.[ii]

         Segundo Amselek, de certa forma, eu estava certa. O presente texto tenta demonstrar o quão não fui abusada. Busca-se aqui pensar a performance, a arte da performance, ou simplesmente a arte, por um lado, e, por outro lado, sua potência política, ação na polis. Para tanto será necessário pensar a linguagem e o Caos, ou melhor o tohu-boru.

Tohu-bohu pode ser compreendido como (subst. masc.)
A. Caos originário, estado inicial da terra. O tohu-bohu simboliza, na origem, uma situação absolutamente anárquica.
B. [...] grande desordem, agitação confusa. [...] bordel, charivari, agitação. [...][iii] (grifo da autora)


         Se, “verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e direito” (AGAMBEN, 2004, p. 133), então política trata de nexo, de conexão, de corte de nexo, e do sem nexo. Logo, política trata de  linguagem.
        
         O que faz a arte quando coloca em ação o sentido de uma sociedade dada? O que faz a arte quando escancara, através de uma quase violência, questões sobre os direitos, as leis, logo, os preconceitos, nesta, existentes?


 Performance Corpo contra conceito. Por Maria Eugênia Matricardi
(participação Diego Azambuja). Brasília, 2013. Duração: 40 min. Foto: Pâmela Guimarães. [iv]



Manifestação (300 mil pessoas) contra más condições do ensino, Santiago, Chile. 30/06/2011. 
Foto: Martin Bernetti/AFP. [v]

         Nua (ultraje público ao pudor?), Maria Eugênia Matricardi, recebe no corpo 20000 litros de água durante cerca de 40 minutos. Resiste, luta, perde, entra de novo no jogo (“jogo”?). A ação refere-se claramente aos carros pipa-arma, verdadeiros tanques utilizados pelas forças, ditas, de segurança contra manifestações políticas realizadas em diversos países. Em que medida a performance, a  arte da performance foi/é grito contra o “nexo entre a violência e o direito”, assim como as manifestações de rua iniciadas em junho de 2013 no Brasil? Poderíamos dizer que as performances artísticas denunciam e anunciam o levante popular brasileiro e suas reivindicações?
         Agamben (2004, p. 108) opõe o Estado de Direito ao Estado de Exceção e em meio a diversos exemplos de estados de exceção inclui o carnaval, a festa e o charivari.
Há muito tempo, folcloristas e antropólogos estão familiarizados com aquelas festas periódicas- como as Antestérias e as Saturnais do mundo clássico e o charivari e o carnaval do mundo medieval e moderno – caracterizadas por permissividade desenfreada e pela suspensão e quebra das hierarquias jurídicas e sociais.
         Lembremos o sentido da palavra “charivari”, existente em português e por muitos esquecida:

CHARIVARI, subst. masc.
A.− Envelhecido. Concerto onde se misturam sons discordantes e barulhentos de utensílios que se entrechocam, de matracas, de gritos e assobios, que era comum organizar para mostrar uma certa reprovação diante de um casamento desigual ou a conduta chocante de uma pessoa. [...]
B.− P. ext.
1. Grande barulho, tumulto reprovador. [...] En partic. Reprovação marcada pelo público diante de uma peça de teatro, un concerto, considerados ruins.
2. Barulho excessivo e discordante. [...]
Charivarisar, verbo. a) Trans. Fazer um charivari (à alguém). No fig. Criticar violentamente alguém ou alguma coisa os tornando ridículos.[vi]

         A performance e o charivari, “inauguram [...] um período de anomia que interrompe e, temporariamente, subverte, a ordem social.” (AGAMBEN, 2004, p. 108). Trata-se de um momento onde os jogos estabelecidos são colocados em questão: há desorganização, há silêncio ou gritaria, há paralisia ou agitação. A bunda é mostrada em deboche, o riso estoura e rasga o ritmo frenético do cotidiano anestesiado. O real se instaura?


Bundalelê. Fotografia de Corpos informáticos. Brasília, 2011.
Foto: Alexandra Martins

         A arte busca o real ainda que este seja inatingível, indizível, diria Barthes.
 [...] indizível, isto é, um fato do qual ele está relutante em reconhecer a existência ou uma realidade de que ele não quer falar diretamente porque o concerne intimamente. [...] Este indizível é, então, um sentido assumido pela fotografia sob o olhar de um espectador - o autor ou um personagem - que encontra, naquilo que ela representa, material a confortar um sentimento, um julgamento, um arrependimento ou uma expectativa que o emociona profundamente e concerne longamente seus engajamentos existenciais - aquilo por que ele não está inclinado a falar. (ARROUYE, 2013) [vii]

         Que indizível é este do qual a arte, e a fotografia, “falam”, mas do qual não se pode falar. Devemos nos calar como queria Wittgenstein?  Calar, talvez sim, mas não parar a arte, ou as manifestações políticas que gritam, vociferam, ladram, e/ou cantam, tocam e dançam. Causando o Charivari nas ruas, algo se incrusta nos corpos-mentes, dementes e entorpecidos da busca incessante por um dinheiro mirrado que não basta para pagar as contas nem a cachaça.
         Este indizível que a arte grita sem construir um sentido capaz de descoberta através do logos é o real. A arte da performance não busca a representação. Ela é presentação, vida nua, crua, o duro, diria Michel Serres (2005). O duro é a vida-puro-corpo, a não linguagem, o real, o tapa na cara, o pedaço de pau em fogo jogado contra a polícia armada até os dentes. O doce é C12H22O11, a cana-de-açúcar processada em altas temperaturas e tratada com enxofre e cal: linguagem. Bomba de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, tanque-carro-pipa contra os corpos.
Nosso corpo quente, potente, resistente, duro então, objeto que se conta em escala entrópica, associa e combina esta dureza à doçura das energias pequenas, informação primeiramente, sentido e linguagem enfim. (SERRES, p. 1985, p. 121) [viii]



João V Borges (Corpos Informáticos) em performance sem título sobre o prédio SG1, UnB, Brasília, 2014. Foto: Natasha de Albuquerque.

A performance, a arte em geral, busca retirar o véu (desvelar) do cotidiano prenhe de linguagem, código, informação. Realidade construída, real obscuro, corpo metamorfoseado em busca de ideais inatingíveis.



Performance Pelos pêlos. Por Mariana Brites e Alexandra Martins
(participação: Ana Paula Quintanillha)
Brasília, 2013. Duração: 4 horas. Foto: Luiz Filipe Barcelos.
  
         As bombas de gás e o gás de pimenta reagem aos manifestantes, necessariamente desorganizados, ousados. Provocar é preciso e é necessário também abandonar certas utopias (será? Qual o conceito de utopia?), abandonar a linguagem doce da realidade. O ser humano se constitui como tal exatamente por possuir a linguagem. No início era o verbo, a linguagem ou o tohu-bohu? O Estado de Exceção só existe porque existe o Estado de Direito: paradigma, alerta Agamben (2004, p. 111). “Mas existe um só dado independente da linguagem?” (SERRES, 1985, p. 119) [ix]



João Paulo Avelar em performance durante laboratório 48 horas do Corpos Informáticos com dado multifacetado de bambu. Foto: Bia Medeiros.
O desejo da arte e da performance de escapar da representação e ser só presentação (sic), vida nua, o duro ou o indizível é utopia ou possibilidade? Compossibilidade, diria Leibniz. A performance busca o real e o indizível e diremos com Marie-Thérèse Mathet, partindo de Lacan:
A diferença entre estas noções (real e realidade) é essencial. O real se distingue absolutamente da realidade. Esta última pertence ao registro simbólico (estamos em um oceano de linguagem). Ela se funde também com o registro imaginário. A realidade ‘é o real preso pelo simbólico, com o qual vai se tecer o imaginário’. Mas o real está além da realidade. O real está, é aquilo que, de não ter sido vivido da realidade, faz sintoma da vida. É aquilo que não funciona, aquilo que dá errado na existência. [...] O real é inatingível [... irrepresentável, impensável não especulável [...] o ponto cego de nosso conhecimento. Lacan voluntariamente repete  que o real é o impossível. Aliás, é nisto que ‘a verdade está junto do real’, na medida em que ‘a dizer inteiramente, é impossível: as palavras faltam’ (J. LACAN, « Télévision », Autres écrits, op. cit., p. 509).” [...] O real postula uma violência feita à ‘boa ordem’, à ordem do logos. Pois a boa ordem não quer saber nada do inaceitável do real. No coração do sistema há esta falta, esta fissura ou fissão de uma violência radical, intransitiva. [...] O desafio não é sempre, então, para os escritores [...] construir uma obra de ficção tendo ares de real, mas de fazer vir o real. [x]
        
         Então podemos aventar, colocar ao vento, que a performance busca este real além da realidade, sintoma da vida, o inatingível, o ponto cego que grita na praia sem dizer palavras, isto é algo longe do oceano da linguagem, tohu-bohu, charivari.

Performance, corpo, política

         Corpos Informáticos organizou os eventos Performance, corpo, política e tecnologia (Local: Escola de Teatro Dulcina de Moraes, CONIC, Brasília, financiamento: MINC/Petrobrás, 2010), Performance, corpo, política do cerrado (Lago Oeste, Brasília. Sem financiamento, 2011), Performance, cidade, corpo, política (Instituto de Artes, UnB, Brasília, financiamento: FLAAC, UnB, 2012), Performance, corpo, política (local: Casa de Cultura da América Latina, financiamento: Redes, FUNARTE, 2013).[xi]
         O objetivo destes eventos foi reunir, agrupar, conectar artistas e grupos de performance, pensadores em arte contemporânea para agir na cidade, interagir entre si, mas naturalmente também pensar a performance como potência política: arte da performance como ação política nas cidades reais (físicas) e virtuais (na rede mundial de computadores). As ações efetuadas durante estes eventos foram certamente agentes de política, mas pouco se ouviu falar sobre política.
         Nos eventos supra-citados foram lembrados, repetidas vezes, Allan Kaprow, Valie Export, Accionismo Vienense, Laurie Anderson, Marina Abramovic, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Ronald Duarte e muitos outros. Não há necessidade de dizer que muitas das ações destes artistas são políticas: buscam mudar, desfocar, rever os dados da contemporaneidade e/ou fazem ver uma realidade presente, porém velada.



Performance por Shima (Márcio Shimabukuro). Brasília, 2013.
Foto Luiz Filipe Barcelos.

         Muitos são os textos, meus e nossos – porque escrever em grupo também é política- que tratam das “bordas rarefeitas da linguagem artística performance”[xii] e a dificuldade em definir, delinear o que seria performance.
         RoseLee Goldberg trata especificamente da performance como linguagem artística nascida das artes plásticas, ou melhor nascida de encontros de artistas: poetas, músicos, artistas plásticos, nem sempre com a presença expressiva de atores. Vejamos a abrangência das colocações de Goldberg. Para ela, a performance pode ser: solo ou em grupo; com luz, música ou efeitos visuais feitos pelo artista ou em colaboração; performadas em galerias, museus ou espaços alternativos; raramente seguindo uma narrativa (porém seguindo ou não um script); composta de uma série de gestos íntimos ou em teatros de grande escala visual; pode durar alguns minutos ou muitas horas; ser espontânea e improvisada ou realizada repetida muitas vezes. O performer seria o artista, sua presença seria elemento diferenciador das outras técnicas artísticas, porém, esta presença, RoseLee Goldberg afirma, ainda, pode ser esotérica, chamânica, instrutiva, provocativa ou, ainda, divertimento.
         Apesar de tocar pontos essenciais da Performance, como a efemeridade, que traz o tempo como elemento estético, a participação do público, o trabalho em grupo, RoseLee Goldberg não os aprofunda e não trata da questão da performance como atitude política frente ao mercado de arte, frente ao cotidiano banalizado, frente às mídias sensacionalistas, frente à corrupção de políticos e empresários. No final, deste trecho do livro, Goldberg afirma ‘cada artista faz a sua definição’. (GOLDBERG, 1995, p. 96)” E se a nossa definição fosse – ainda que sejamos contra definições: a palavra que denomina necessariamente domina (Derrida, 2002)- a performance é ato político que instala o charivari no seio da sociedade?
         O conceito de performance, sua definição, deve permanecer aberto para que seja política dentro do campo das artes, para que permaneça longe da linguagem, para que confronte os sentimentos e arregale o sensível (aisthesis). A performance é o hacker de todas as linguagens artísticas: quebrou as  molduras das artes visuais, escorreu pelas paredes, riscou o chão; trouxe o improviso para o teatro e para a dança; fez gritar o coro tornando a criação processo colaborativo.
         Mas o que seria, de fato, performance como política e de que política estamos falando? Com que relações de poder joga a performance? A performance joga? É jogo? A performance tem poder? Podres poderes apenas?
         A política da arte são ações e objetos, instrumentos de uma sensibilização e/ou uma reflexão, com todos os sentidos, que gera ou pode gerar movimento no sentido de uma modificação do que está dado no mundo, em um mundo, em um local, em pessoas. Estas ações modificam, com sua atitude, o que Rancière (2005, p. 14) define como “práticas estéticas” de uma “estética primeira”: “A política incide sobre o que vemos e o que podemos dizer, sobre quem tem a competência para ver e a qualidade para dizer, sobre as propriedades dos espaços e os possíveis do tempo”.[xiii]
         No nosso entender, a política da arte incide sobre o que vemos, o que querem(os) esconder e o que não querem(os) ver; incide sobre o que podem(os)os dizer, sobre o que calam(os) e sobre o que não nos foi dado dizer; incide sobre quem tem a (in)competência de ver, de olhar, de sentir; sobre os que tem a (in)competência de tocar, sobre os que foram/estão cegos e/ou foram cegados pela sociedade hiperindustrial (STIEGLER, 2007). A política da arte incide sobre os espaços modificando-os, redimensionando-os, fazendo destes espaços o outro daquilo que os poderes definiram como positividade. A política da arte da performance vira o tempo do avesso, o atravessa, ronda e faz buraco, faz vento, evento, muda o clima e o tempo (embora ainda ao seja capaz de fazer chover no sertão ou parar inundações).
         O virtual, a rede mundial de computadores, traz entendimentos do espaço tempo diferenciados, mas também joga dados com a noção de ficção.

Conclusão
         A performance não é ficção nem representação. Ela não apresenta, ela presenta, presentifica, torna presente algo que antes não estava posto. A arte pode ser ficção. A performance, à qual nos referimos, não é ficção: ela joga na cara o real irredutível a representações. Daí resulta a dificuldade de transformar em linguagem aquilo que é gás: puro movimento que não assenta, não se acenta, não senta, não acentua nem se acentua. Daí resulta o desassossego que gera o charivai.  nem pode ser sossegado.
https://www.youtube.com/watch?v=mhXJM6t1V_w
         O charivari escapa ao Estado, é nômade, diriam Deleuze e Guattari. A palavra, a realidade e o doce tentam tomar para si tudo ou quase tudo. A performance deve escapar para permanecer potência política.
         Não é ficção: é real: “O real postula uma violência feita à ‘boa ordem’, à ordem do logos”. (MATHET, op.cit.)
         Afirma Rancière (2005, p. 49): “que o esgoto seja revelador de uma civilização.” A urina revela o que foi ingerido, o sangue carrega as marcas de tudo que foi tocado pelo corpo, as fezes são um retrato de seu defecador. A asséptica sociedade hiperindustrial nada quer saber sobre seu início ou sua origem - não há tempo para isto-; nada quer saber de o esgoto que (se) esconde sobre o tapete de palavras doces incessantemente manipuladas pela mídia. É preciso alertá-la que do esgoto, do resto, do rastro advém o lance que revela os engodos da civilização.
         E retorno a meu texto de 2005 : “no início era a aisthesis”, para afirmar com Amselek que Lacan, de fato, foi abusado afirmando que no início era a linguagem ou o verbo. Tal afirmação implicaria dizer que no início era a realidade e não real: aisthesis, charivari, manifestação, mania-festa-ação. Seria possível a realidade anteceder o real?
         No início era o tohu-bohu e lá estava o indizível e o irrepresentável do real: tapa na cara da política instituída com seus partidos que não nos representam, seus políticos corruptos e seus conchavos. No início era a performance e as manifestações de rua: charivari: sons discordantes, demonstração de reprovação, crítica que ridiculariza. E teríamos que retornar ao conceito de “fuleragem”. Corpos Informáticos desenvolve o conceito de “fuleragem”:
A fuleragem não é obra de arte nem acontecimento, é ocasião (oca grande), acaso e improviso. Ela é mixuruca e não efêmera, renuncia à obra, ao espaço insitu e mente. [... A fuleragem se dá por parasitagem na paisagem física ou virtual, com participação iterativa do espectador que dança, canta, pula corda ou se excita na frente da enceradeira vermelha. (MEDEIROS, 2011, p. 200)
         A performance, que gera aisthesis, fuleragem, foge da linguagem e de definições, vai para as ruas com as manifestações políticas de rua. Estas fazem política sem líder, sem palco, sem rumo. Puro duro jogado na “carne” (cirurgia plástica, botox, silicone, rede “globo”: o que resta da carne? Que corpo é este? [xiv]) daqueles que se calam no sofá diante de suas tele-visões (as imagens que saem das televisões são, de fato, visões fantasmagóricas). Talvez as manifestações de rua, o tohu-bohu, possam ser o início, “mas existe um só dado independente da linguagem” ? (SERRES, 1985, p. 119).

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AMSELEK, Alain. Entre Réel et Réalité, Où se situe l’efficace de l’action thérapeutique? Cycle de conférences PSYCORPS sur la place du réel en psychothérapie psychanalytique, Conferência de 22 septembre 2010 à Bruxelles. Disponível em <www.psycorps.org/la-revue/sommaires?start=20>. Acesso em 17 de julho de 2013.
ARROUYE, Jean, Un indicible extrinsèque, comunicação apresentada na journée d’étude: “Photographie et Indicible”, 12 de maio 2011, Universidade de Rennes 2, laboratório Cellam, publicado em Phlit. 26/02/2013. Disponível em <phlit.org/press/?p=1288>. Acesso em 17 de julho de 2013.
CHARIVARI. Disponível em <http://www.cnrtl.fr/definition/charivari>. Acesso em 17 de julho de 2013. (Centre National dês Ressources Textuelles ET Lexicales, CNRS).
DERRIDA. O animal que logo sou. São Paulo: UNESP, 2002.
MATHET, Marie-Thérèse. Retour sur le réel. Utpictura18, Centre Interdisciplinaire d’Étude des Littératures d’Aix-Marseille. Disponível em <www.univ-montp3.fr/pictura/Dispositifs/RetourReel.php>. Acesso em 17 de julho de 2013.
MEDEIROS, M.B. “Que canta e ri”, in AQUINO, F. & MEDEIROS, M.B. Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: PPG-Arte/UnB, 2011.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: edições 34, 2005.
RoseLee Goldberg. Performance Art. From Futurism to the present. Singapura: Thames and Hudson, 1995.
SERRES, Michel. Les cinq sens. Paris : Grasset, 1985
STIEGLER, Bernard. Reflexões (não) contemporâneas. Tradução e organização de Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.
TOHU-BORU. Disponível em <www.cnrtl.fr/lexicographie/tohu-bohu>. Acesso em 17 de julho de 2013. (Centre National des Ressources Textuelles et Lexicales, CNRS).





[i] Este texto foi primeiramente publicado na Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 4, n. 1 (2014). Aqui ele foi revisto e ampliado.
[ii] Lacan est malheureusement parti d’une mauvaise lecture de la Bible affirmant « Au commencement est le Verbe »[ii], qu’il a transformé abusivement en : « Au commencement est le langage », alors que la Bible hébraïque dit expressément « Dans les commencements était le Chaos (tohu-bohu) », c’est-à-dire le Vide d’image, de structure, de substance. AMSELEK, Alain. Entre Réel et Réalité, Où se situe l’efficace de l’action thérapeutique? Cycle de conférences PSYCORPS sur la place du réel en psychothérapie psychanalytique, Conferência de 22 setembro de 2010, Bruxelles.

[iii] TOHU(-)BOHU,(TOHU BOHU, TOHU-BOHU), subst. masc.
A. − Chaos originel, état initial de la terre.  Le tohu bohu symbolise, à l'origine, une situation absolument anarchique.
B. − Souvent fam. Grand désordre, agitation confuse.  Synon. très fam. bordel, charivari, remue-ménage.
 En partic. Bruit confus, tumulte bruyant.  Synon. brouhaha, tapage, tintamarre. [...]
 C. − Ensemble confus de choses mêlées.  Synon. fatras, fouillis.
[...] dans la Genèse (1, 2) pour décrire l'état de la terre avant la création [...].
TOHU-BOHU. Disponível em : <www.cnrtl.fr/lexicographie/tohu-bohu>. Acesso em 17 de julho de 2013.
Centre National des Ressources Textuelles et Lexicales, CNRS.
[iv] Performance realizada durante o evento Performance, corpo, política, organizado pelo Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, Brasília, 2013. www.performancecorpopolitica.net/?gallery=maria-eugenia-maria-corpo-contra-conceito
[v] Disponível em <lupa.net/carabineros-utiliza-gas-y-agua-para-disolver-marcha-de-estudiantes>. Acesso em 17 de julho de 2013. 
[vi] CHARIVARI, subst. masc.
A.− Vieilli. Concert où se mélangent les sons discordants et bruyants d'ustensiles de cuisine entrechoqués, de crécelles, de cris et de sifflets, qu'il était d'usage d'organiser pour montrer une certaine réprobation devant un mariage mal assorti ou la conduite choquante d'une personne. [ ...]
B.− P. ext.
1. Grand bruit, tumulte réprobateur. [...] En partic. Réprobation marquée par le public devant une pièce de théâtre, un concert, considérés comme mauvais.
2. Bruit excessif et discordant. [...]
Charivariser, verbe. a) Trans. Faire un charivari (à quelqu'un). Au fig. Critiquer violemment quelqu'un ou quelque chose en les rendant ridicules. 
Disponível em <www.cnrtl.fr/definition/charivari>. Acesso em 17 de julho de 2013.

[vii] [...] indicible, c’est-à-dire un état de fait dont il est réticent à reconnaître l’existence ou une réalité dont il ne souhaite pas parler directement parce qu’elle le concerne intimement. [...] Cet indicible est donc un sens assumé par la photographie sous le regard d’un spectateur - l’auteur ou un personnage -qui trouve dans ce qu’elle représente matière à conforter un sentiment, un jugement, un regret ou une attente qui l’émeut profondément et concerne durablement ses engagements existentiels – ce pourquoi il n’est pas porté à en parler. ARROUYE, Jean. Un indicible extrinsèque. PHLIT. Répertoire de la photolittérature comtemporaine et ancienne. Disponível em <phlit.org/press/wp-content/uploads/2013/02/Arrouye_Un-indicible-extrinse%CC%80que.pdf>. Acesso em 17 de julho de 2013.

[viii] Notre corps chaud, puissant, résistant, dur donc, objet comptable à l´échelle entropique, associe et mêle cette dureté à la douceur des énergies petites, information d´abord, sens et langage enfim. (SERRES, p. 1985, p. 121)
[ix]Existe-t-il um Seul donné indépendant du langage?” (SERRES, 1985, p. 119)
[x] Desculpo-me pela longa citação. Esta devido ao fato da inexistência de tradução deste texto para português.
La différence entre ces notions [réel et réalité] est essentielle. Le réel se distingue absolument de la réalité[3]. Cette dernière appartient au registre symbolique (on baigne en effet dans un océan de langage). Elle se fonde aussi sur le registre imaginaire. La réalité, « c’est le réel apprivoisé par le symbolique, avec lequel va se tisser l’imaginaire ». Mais le réel est au-delà de la réalité. Le réel, c’est ce qui, de n’avoir pas été vécu de la réalité, fait symptôme de la vie. C’est ce qui ne marche pas, ce qui cloche dans l’existence. [...] Le réel est inatteignable [...] étant irreprésentable, impensable, non spécularisable [...] Lacan répète volontiers que le réel c’est l’impossible. C’est d’ailleurs en quoi « la vérité tient au réel », dans la mesure où « la dire toute, c’est impossible : les mots y manquent ». [...] Le réel postule une violence faite au « bon ordre », à l’ordre du logos. Car le bon ordre, lui, ne veut rien savoir de l’inacceptable du réel. Au cœur du système il y a ce manque, cette fissure ou fission d’une violence radicale, intransitive. [...] L’enjeu n’est donc pas toujours pour les écrivains, comme on pourrait le croire, de construire une œuvre de fiction ayant des airs réels, mais de faire advenir le réel. Disponível em <www.univ-montp3.fr/pictura/Dispositifs/RetourReel.php>. Acesso em 17 de julho de 2013.
[xi] Participaram destes eventos os artistas: Adriana Varella (EUA),  Alex Topini (Grupo Filé de Peixe, RJ), Ayrson Heráclito (BA), Beatriz Provasi (RJ), Bia Medeiros (curadora, DF), Camila Soato (DF), Coletivo ES3 (RN), Daniel Toso (Espnha), Daniela Felix e Rose Boaretto (BA), Diego Azambuja (DF), Divino Sobral (GO), Edgar de Oliva (BA-RJ), Fernando Aquino (DF), Fernando Ribeiro (PR), Fernando Villar (DF), Ines Linke (MG),  João Matos (BA), Jorge Manuel de Oliveira Dias (Moçambique), Grupo Empreza (GO), Larissa Ferreira (BA-DF), Lilian Amaral (SP), Lucio Agra (SP), Luara Learth (DF), Maicyra Leão (SE), Malu Fragoso (RJ), Márcio Mota (gravações em vídeo, DF), Márcio Shimabukuro (SP-MG), Maria Eugênia Matricardi (DF), Coletivo a Deriva (MT), Mariana Brites (DF), Nathalie Bikoro (Gabão/Alemanha), Natasha de Albuquerque (DF),  Nelda Ramos (Argentina), Pâmela Guimarães (AL), Polyanna Morgana (DF), Simone Michelin (RJ), Tuti Minervini (BA), Victor Carballar (Paraguai), Victor Valentim (controle sonoro, DF), Yara Guasque (SC), Zmário (BA) entre outros.
[xii] Disponível em <www.corpos.org/papers/bordas.html>. Acesso em 17 de julho de 2013.
[xiii] La politique porte sur ce qu’on voit et ce qu’on peut en dire, sur qui a la compétence pour voir et la qualité pour dire, sur les propriétés des espaces et les possibles du temps. (RANCIÈRE, 2005, p. 14)
[xiv] http://www.corpos.org/quecorpo/INDEX.HTM

sábado, 19 de abril de 2014

15 anos de performances de Zmário ACBEU, Salvador, 2012









15 anos de performances de Zmário
ACBEU, Salvador, 2012



ZMário em performance

"Teorias e conceitos bem amarrados" (palestra performática), 2007-2011. Registros: João Matos.





























Clipes ou tábua de passar? Corpo exposto, posto, todos pensam, pasmos. A identidade não mais procura abrigo, briga. Jogo franco, tapa na cara, beijo de língua.

A preparação não é só física, vem de um olhar que atravessa o i-mundo. Zmário não brinca. A performance não é brincadeira, traz o outro, o mesmo e você, todos despidos de carne diante de si, pelo corpo de Zmário.

Aqui, na produção em performance de Zmário, a dissertação de Mestrado é tese de Doutorado, a performance é porrada, o carro se cala, o transeunte goza na boca da praça.

Quando Zmário entra em ação, paro e sinto o suor dos outros escorrem, no meu corpo, como água nas infinitas cachoeiras de pensamentos que dimensionam o inaudito, o inclassificável, o, talvez, crível. A boiada grasna, os helicópteros festejam como formigas atrás dos doces do ebó.

O corpo de Zmário está escrito nas páginas do trote, do deboche, da bunda. Ele se deposita como desejo no vácuo do cu, na paisagem dos cumes. Ele rasga a solidão das colheres sujas que esperam a cura.


ZMário em performance Z1M1. no evento PCPT organizado pelo Corpos Informáticos, 2010.
www.performancecorpopolitica.net


Haverá suscitação e ebulição de osso,[1] de pele, de pelo, de cabelo. Pedaços que Zmário vai nos presenteando, pouco a pouco, de forma intensa, imensa. Marcas requintadas de efemeridade impostas como cicatrizes para sempre abertas.

Pensar é privilégio de poucos. Zmário arrisca mais longe: trisca com seu suor, risca com o torso, trai (a-ante-até-após-com-contra-de-desde-em-entre-para-pre-perante-por) o barroco-esquizo-rizomático baiano, propõe às hordas o sem bordas com bordados inacabados.

Silêncio: no entusiasmo, Zmário invoca.


Bia Medeiros dança a valsa do arrocha com ZMário em seus 15 anos de performance.
Salvador, 2012.


texto por Bia Medeiros em 2012.








[1] Referência ao Coletivo Osso (coletivosso.blogspot.com.br/) do qual Zmário participou e com o qual colabora. Hoje fazem parte do Coletivo Osso: Daniela Félix, João Pedro Matos, Lucas Moreira, Rose Boaretto, Tiago Sant´Ana. 

http://zmarioperformer.blogspot.com.br/