Performance,
charivari e política[i]
http://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/41695
Maria
Beatriz de Medeiros
Universidade
de Brasília – UnB, Brasília/DF, Brasil
RESUMO
_ Performance, charivari e política - Este
texto trata de performance, charivari, isto é, manifestação política de rua com
sua desorganização necessária, e política. Para tanto conversa com Amselek,
Lacan, Derrida, Agamben, Rancière discutindo o início: aisthesis, tohu-bohu ou
linguagem? Real ou realidade? A performance não é ficção nem representação. Ela
não apresenta, ela presenta,
presentifica, torna presente algo que antes não estava posto. A arte pode ser
ficção. A performance à qual nos referimos não é ficção: ela joga na cara o
real irredutível a representações.
Palavras-chave:
Performance, aisthesis, charivari, manifestação, política
Abstract - Performance, charivari and politics - This
paper deals with performance, charivari, ie political demonstration street with
your clutter necessary, and politics. For this we discuss with Amselek, Lacan,
Derrida, Agamben, Rancière thinking the beginning: aisthesis, tohu-bohu or
language? Real or reality? The performance is not fiction or representation. It
presents, it presents, makes present, put something that was not there before.
Art can be fiction. The performance to which we refer is not fiction: it throws
in the face the real irreducible to representations.
Key-words: Performance,
aisthesis, charivari, manifestation,
politics
Resumé - Performance, charivari et politique - Ce texte traite de la
performance, charivari, c'est à dire, manifestation politique dans les
rues avec sa desorganisation nécéssaire,
et politique. Pour cela entame une conversation avec Amselek, Lacan, Derrida,
Agamben, Rancière pour discuter le début: aisthesis,
tohu bohu, ou langage? Réel ou
réalité? La performance n'est pas fiction ni représentation. Elle présente,
rend présent, rend présent quelque chose qui n´était pas donnée. L'art peut
être une fiction. La performance à laquelle nous faison référence n'est pas
fiction: il jette sur le visage le réel irréductible à des rerésentations.
Mots-clés : Performance,
aisthesis, charivari, manifestation,
politique
Meu
livro Aisthesis (2005, p. 15) começa
afirmando que “No início era a aisthesis”,
isto é “estar aberto ao mundo, aberto ao sensível do/no mundo e deixar-se
contaminar”. O intento era discutir a afirmação “No início era o verbo”, isto é
signo, linguagem, que, pensava eu na época era o texto que abria a Bíblia,
dita, Sagrada.
Corpos Informáticos em performance Anadiômena. Lago Paranoá,
Brasília, 2014.
Foto: Bia Medeiros
Leio,
hoje, em 2013, Alain Amselek, em texto datado de 2010:
Lacan,
infelizmente, partiu de uma má leitura da Bíblia afirmando que “No início era o
verbo”, que ele transformou, abusivamente, em “No início era a linguagem”,
quando a Bíblia hebraica diz, expressamente, “Nos começos era o Caos (tohu-bohu)”, isto é o Vazio da imagem,
da estrutura, da substância.[ii]
Segundo Amselek, de certa forma, eu
estava certa. O presente texto tenta demonstrar o quão não fui abusada.
Busca-se aqui pensar a performance, a arte da performance, ou simplesmente a
arte, por um lado, e, por outro lado, sua potência política, ação na polis. Para tanto será necessário pensar
a linguagem e o Caos, ou melhor o tohu-boru.
Tohu-bohu pode ser compreendido como (subst. masc.)
A. Caos originário, estado inicial da terra. O tohu-bohu simboliza, na origem, uma
situação absolutamente anárquica.
B. [...] grande desordem, agitação confusa. [...]
bordel, charivari, agitação. [...][iii] (grifo
da autora)
Se, “verdadeiramente política é apenas
aquela ação que corta o nexo entre violência e direito” (AGAMBEN, 2004, p.
133), então política trata de nexo, de conexão, de corte de nexo, e do sem
nexo. Logo, política trata de linguagem.
O que faz a arte quando coloca em ação
o sentido de uma sociedade dada? O que faz a arte quando escancara, através de
uma quase violência, questões sobre os direitos, as leis, logo, os
preconceitos, nesta, existentes?
Performance Corpo contra conceito. Por Maria Eugênia Matricardi
(participação Diego Azambuja).
Brasília, 2013. Duração: 40 min. Foto: Pâmela Guimarães. [iv]
Manifestação (300 mil pessoas) contra más
condições do ensino, Santiago, Chile. 30/06/2011.
Foto: Martin Bernetti/AFP. [v]
Nua
(ultraje público ao pudor?), Maria Eugênia Matricardi, recebe no corpo
20000 litros de água durante cerca de 40 minutos. Resiste, luta, perde, entra
de novo no jogo (“jogo”?). A ação refere-se claramente aos carros pipa-arma,
verdadeiros tanques utilizados pelas forças, ditas, de segurança contra
manifestações políticas realizadas em diversos países. Em que medida a
performance, a arte da performance foi/é
grito contra o “nexo entre a violência e o direito”, assim como as
manifestações de rua iniciadas em junho de 2013 no Brasil? Poderíamos dizer que
as performances artísticas denunciam e anunciam o levante popular brasileiro e
suas reivindicações?
Agamben
(2004, p. 108) opõe o Estado de Direito ao Estado de Exceção e em meio a
diversos exemplos de estados de exceção inclui o carnaval, a festa e o
charivari.
Há muito tempo,
folcloristas e antropólogos estão familiarizados com aquelas festas periódicas-
como as Antestérias e as Saturnais do mundo clássico e o charivari e o carnaval do mundo medieval e moderno – caracterizadas
por permissividade desenfreada e pela suspensão e quebra das hierarquias
jurídicas e sociais.
Lembremos o sentido da palavra
“charivari”, existente em português e por muitos esquecida:
CHARIVARI, subst.
masc.
A.− Envelhecido. Concerto onde se misturam sons discordantes e
barulhentos de utensílios que se entrechocam, de matracas, de gritos e
assobios, que era comum organizar para mostrar uma certa reprovação diante de
um casamento desigual ou a conduta chocante de uma pessoa. [...]
B.− P. ext.
1. Grande barulho,
tumulto reprovador. [...] En partic. Reprovação marcada pelo
público diante de uma peça de teatro, un concerto, considerados ruins.
2. Barulho excessivo e discordante. [...]
Charivarisar, verbo. a) Trans. Fazer
um charivari (à alguém). No fig. Criticar violentamente alguém
ou alguma coisa os tornando ridículos.[vi]
A
performance e o charivari, “inauguram [...] um período de anomia que interrompe
e, temporariamente, subverte, a ordem social.” (AGAMBEN, 2004, p. 108).
Trata-se de um momento onde os jogos estabelecidos são colocados em questão: há
desorganização, há silêncio ou gritaria, há paralisia ou agitação. A bunda é
mostrada em deboche, o riso estoura e rasga o ritmo frenético do cotidiano
anestesiado. O real se instaura?
Bundalelê. Fotografia de
Corpos informáticos. Brasília, 2011.
Foto: Alexandra Martins
A arte busca o real ainda que este seja
inatingível, indizível, diria Barthes.
[...] indizível, isto é, um fato
do qual ele está relutante em reconhecer a existência ou uma realidade de que
ele não quer falar diretamente porque o concerne intimamente. [...] Este
indizível é, então, um sentido assumido pela fotografia sob o olhar de um
espectador - o autor ou um personagem - que encontra, naquilo que ela
representa, material a confortar um sentimento, um julgamento, um
arrependimento ou uma expectativa que o emociona profundamente e concerne
longamente seus engajamentos existenciais - aquilo por que ele não está
inclinado a falar. (ARROUYE,
2013) [vii]
Que
indizível é este do qual a arte, e a fotografia, “falam”, mas do qual não se
pode falar. Devemos nos calar como queria Wittgenstein? Calar, talvez sim, mas não parar a arte, ou
as manifestações políticas que gritam, vociferam, ladram, e/ou cantam, tocam e
dançam. Causando o Charivari nas ruas, algo se incrusta nos corpos-mentes,
dementes e entorpecidos da busca incessante por um dinheiro mirrado que não
basta para pagar as contas nem a cachaça.
Este
indizível que a arte grita sem construir um sentido capaz de descoberta através
do logos é o real. A arte da
performance não busca a representação. Ela é presentação, vida nua, crua, o duro, diria Michel Serres (2005). O
duro é a vida-puro-corpo, a não linguagem, o real, o tapa na cara, o pedaço de
pau em fogo jogado contra a polícia armada até os dentes. O doce é C12H22O11, a cana-de-açúcar processada em altas
temperaturas e tratada com enxofre e cal: linguagem. Bomba de gás lacrimogêneo, spray
de pimenta, tanque-carro-pipa contra os corpos.
Nosso corpo quente, potente, resistente, duro então, objeto
que se conta em escala entrópica, associa e combina esta dureza à doçura das
energias pequenas, informação primeiramente, sentido e linguagem enfim.
(SERRES, p. 1985, p. 121) [viii]
João V Borges (Corpos Informáticos) em
performance sem título sobre o prédio SG1, UnB, Brasília, 2014. Foto: Natasha
de Albuquerque.
A performance, a arte em geral, busca retirar o véu (desvelar) do
cotidiano prenhe de linguagem, código, informação. Realidade construída, real obscuro,
corpo metamorfoseado em busca de ideais inatingíveis.
Performance Pelos pêlos. Por Mariana Brites e
Alexandra Martins
(participação: Ana Paula Quintanillha)
Brasília, 2013. Duração: 4 horas. Foto: Luiz Filipe
Barcelos.
As bombas de gás e o gás de pimenta
reagem aos manifestantes, necessariamente desorganizados, ousados. Provocar é
preciso e é necessário também abandonar certas utopias (será? Qual o conceito
de utopia?), abandonar a linguagem doce da realidade. O ser humano se constitui
como tal exatamente por possuir a linguagem. No início era o verbo, a linguagem
ou o tohu-bohu? O Estado de Exceção
só existe porque existe o Estado de Direito: paradigma, alerta Agamben (2004,
p. 111). “Mas existe um só dado independente da linguagem?” (SERRES, 1985, p.
119) [ix]
João Paulo Avelar em performance durante
laboratório 48 horas do Corpos
Informáticos com dado multifacetado de bambu. Foto: Bia Medeiros.
O desejo da arte e da performance de escapar da representação e ser só
presentação (sic), vida nua, o duro ou o indizível é utopia ou possibilidade?
Compossibilidade, diria Leibniz. A performance busca o real e o indizível e
diremos com
Marie-Thérèse Mathet, partindo de Lacan:
A
diferença entre estas noções (real e realidade) é essencial. O real se distingue
absolutamente da realidade. Esta última pertence ao registro simbólico (estamos
em um oceano de linguagem). Ela se funde também com o registro imaginário. A
realidade ‘é o real preso pelo simbólico, com o qual vai se tecer o
imaginário’. Mas o real está além da realidade. O real está, é aquilo que, de
não ter sido vivido da realidade, faz sintoma da vida. É aquilo que não
funciona, aquilo que dá errado na existência. [...] O
real é inatingível [... irrepresentável, impensável não especulável [...] o ponto
cego de nosso conhecimento. Lacan voluntariamente repete que o real é o impossível. Aliás, é nisto que
‘a verdade está junto do real’, na medida em que ‘a dizer inteiramente, é
impossível: as palavras faltam’ (J. LACAN, « Télévision », Autres écrits, op. cit., p. 509).” [...] O real postula uma
violência feita à ‘boa ordem’, à ordem do logos. Pois a boa ordem não quer
saber nada do inaceitável do real. No coração do sistema há esta falta, esta
fissura ou fissão de uma violência radical, intransitiva. [...] O desafio não é
sempre, então, para os escritores [...] construir uma obra de ficção tendo ares
de real, mas de fazer vir o real. [x]
Então
podemos aventar, colocar ao vento, que a performance busca este real além da
realidade, sintoma da vida, o inatingível, o ponto cego que grita na praia sem
dizer palavras, isto é algo longe do oceano da linguagem, tohu-bohu, charivari.
Performance, corpo, política
Corpos
Informáticos organizou os eventos Performance,
corpo, política e tecnologia (Local: Escola de Teatro Dulcina de Moraes,
CONIC, Brasília, financiamento: MINC/Petrobrás, 2010), Performance, corpo, política do cerrado (Lago Oeste, Brasília. Sem
financiamento, 2011), Performance,
cidade, corpo, política (Instituto de Artes, UnB, Brasília, financiamento:
FLAAC, UnB, 2012), Performance, corpo,
política (local: Casa de Cultura da América Latina, financiamento: Redes,
FUNARTE, 2013).[xi]
O
objetivo destes eventos foi reunir, agrupar, conectar artistas e grupos de
performance, pensadores em arte contemporânea para agir na cidade, interagir
entre si, mas naturalmente também pensar a performance como potência política:
arte da performance como ação política nas cidades reais (físicas) e virtuais
(na rede mundial de computadores). As ações efetuadas durante estes eventos
foram certamente agentes de política, mas pouco se ouviu falar sobre política.
Nos
eventos supra-citados foram lembrados, repetidas vezes, Allan Kaprow, Valie
Export, Accionismo Vienense, Laurie Anderson, Marina Abramovic, Lygia Clark,
Hélio Oiticica, Ronald Duarte e muitos outros. Não há necessidade de dizer que
muitas das ações destes artistas são políticas: buscam mudar, desfocar, rever
os dados da contemporaneidade e/ou fazem ver uma realidade presente, porém
velada.
Performance por Shima (Márcio Shimabukuro). Brasília,
2013.
Foto Luiz Filipe Barcelos.
Muitos
são os textos, meus e nossos – porque escrever em grupo também é política- que
tratam das “bordas rarefeitas da linguagem artística performance”[xii] e a
dificuldade em definir, delinear o que seria performance.
RoseLee Goldberg
trata especificamente da performance como linguagem artística nascida das artes
plásticas, ou melhor nascida de encontros de artistas: poetas, músicos,
artistas plásticos, nem sempre com a presença expressiva de atores. Vejamos a
abrangência das colocações de Goldberg. Para ela, a performance pode ser: solo
ou em grupo; com luz, música ou efeitos visuais feitos pelo artista ou em
colaboração; performadas em
galerias, museus ou espaços alternativos; raramente seguindo uma narrativa
(porém seguindo ou não um script);
composta de uma série de gestos íntimos ou em teatros de grande escala visual;
pode durar alguns minutos ou muitas horas; ser espontânea e improvisada ou
realizada repetida muitas vezes. O performer seria o artista, sua presença seria
elemento diferenciador das outras técnicas artísticas, porém, esta presença,
RoseLee Goldberg afirma, ainda, pode ser esotérica, chamânica, instrutiva,
provocativa ou, ainda, divertimento.
Apesar de tocar
pontos essenciais da Performance, como a efemeridade, que traz o tempo como
elemento estético, a participação do público, o trabalho em grupo, RoseLee
Goldberg não os aprofunda e não trata da questão da performance como atitude
política frente ao mercado de arte, frente ao cotidiano banalizado, frente às
mídias sensacionalistas, frente à corrupção de políticos e empresários. No
final, deste trecho do livro, Goldberg afirma ‘cada artista faz a sua
definição’. (GOLDBERG, 1995, p. 96)” E se a nossa definição fosse – ainda que
sejamos contra definições: a palavra que denomina necessariamente domina
(Derrida, 2002)- a performance é ato político que instala o charivari no seio
da sociedade?
O
conceito de performance, sua definição, deve permanecer aberto para que seja
política dentro do campo das artes, para que permaneça longe da linguagem, para
que confronte os sentimentos e arregale o sensível (aisthesis). A performance é o hacker
de todas as linguagens artísticas: quebrou as
molduras das artes visuais, escorreu pelas paredes, riscou o chão;
trouxe o improviso para o teatro e para a dança; fez gritar o coro tornando a
criação processo colaborativo.
Mas
o que seria, de fato, performance como política e de que política estamos
falando? Com que relações de poder joga a performance? A performance joga? É
jogo? A performance tem poder? Podres poderes apenas?
A
política da arte são ações e objetos, instrumentos de uma sensibilização e/ou
uma reflexão, com todos os sentidos, que gera ou pode gerar movimento no
sentido de uma modificação do que está dado no mundo, em um mundo, em um local,
em pessoas. Estas ações modificam, com sua atitude, o que Rancière (2005, p.
14) define como “práticas estéticas” de uma “estética primeira”: “A política
incide sobre o que vemos e o que podemos dizer, sobre quem tem a competência
para ver e a qualidade para dizer, sobre as propriedades dos espaços e os
possíveis do tempo”.[xiii]
No
nosso entender, a política da arte incide sobre o que vemos, o que querem(os)
esconder e o que não querem(os) ver; incide sobre o que podem(os)os dizer,
sobre o que calam(os) e sobre o que não nos foi dado dizer; incide sobre quem
tem a (in)competência de ver, de olhar, de sentir; sobre os que tem a (in)competência
de tocar, sobre os que foram/estão cegos e/ou foram cegados pela sociedade
hiperindustrial (STIEGLER, 2007). A política da arte incide sobre os espaços
modificando-os, redimensionando-os, fazendo destes espaços o outro daquilo que
os poderes definiram como positividade. A política da arte da performance vira
o tempo do avesso, o atravessa, ronda e faz buraco, faz vento, evento, muda o clima
e o tempo (embora ainda ao seja capaz de fazer chover no sertão ou parar
inundações).
O
virtual, a rede mundial de computadores, traz entendimentos do espaço tempo
diferenciados, mas também joga dados com a noção de ficção.
Conclusão
A
performance não é ficção nem representação. Ela não apresenta, ela presenta, presentifica, torna presente
algo que antes não estava posto. A arte pode ser ficção. A performance, à qual
nos referimos, não é ficção: ela joga na cara o real irredutível a
representações. Daí resulta a dificuldade de transformar em linguagem aquilo
que é gás: puro movimento que não assenta, não se acenta, não senta, não acentua
nem se acentua. Daí resulta o desassossego que gera o charivai. nem pode ser sossegado.
https://www.youtube.com/watch?v=mhXJM6t1V_w
O charivari escapa ao Estado, é nômade,
diriam Deleuze e Guattari. A palavra, a realidade e o doce tentam tomar para si
tudo ou quase tudo. A performance deve escapar para permanecer potência
política.
Não é ficção: é real: “O real postula uma violência feita à
‘boa ordem’, à ordem do logos”.
(MATHET, op.cit.)
Afirma
Rancière (2005, p. 49): “que o esgoto seja revelador de uma civilização.” A
urina revela o que foi ingerido, o sangue carrega as marcas de tudo que foi
tocado pelo corpo, as fezes são um retrato de seu defecador. A asséptica
sociedade hiperindustrial nada quer saber sobre seu início ou sua origem - não
há tempo para isto-; nada quer saber de o esgoto que (se) esconde sobre o
tapete de palavras doces incessantemente manipuladas pela mídia. É preciso
alertá-la que do esgoto, do resto, do rastro advém o lance que revela os
engodos da civilização.
E
retorno a meu texto de 2005 : “no início era a aisthesis”, para afirmar com Amselek que Lacan, de fato, foi
abusado afirmando que no início era a linguagem ou o verbo. Tal afirmação
implicaria dizer que no início era a realidade e não real: aisthesis, charivari, manifestação, mania-festa-ação. Seria possível
a realidade anteceder o real?
No
início era o tohu-bohu e lá estava o
indizível e o irrepresentável do real: tapa na cara da política instituída com
seus partidos que não nos representam, seus políticos corruptos e seus
conchavos. No início era a performance e as manifestações de rua: charivari:
sons discordantes, demonstração de reprovação, crítica que ridiculariza. E
teríamos que retornar ao conceito de “fuleragem”. Corpos Informáticos
desenvolve o conceito de “fuleragem”:
A
fuleragem não é obra de arte nem acontecimento, é ocasião (oca grande), acaso e
improviso. Ela é mixuruca e não efêmera, renuncia à obra, ao espaço insitu e mente. [... A fuleragem se dá
por parasitagem na paisagem física ou virtual, com participação iterativa do
espectador que dança, canta, pula corda ou se excita na frente da enceradeira
vermelha. (MEDEIROS, 2011, p. 200)
A
performance, que gera aisthesis,
fuleragem, foge da linguagem e de definições, vai para as ruas com as
manifestações políticas de rua. Estas fazem política sem líder, sem palco, sem
rumo. Puro duro jogado na “carne” (cirurgia plástica, botox, silicone, rede
“globo”: o que resta da carne? Que corpo é este? [xiv])
daqueles que se calam no sofá diante de suas tele-visões (as imagens que saem
das televisões são, de fato, visões fantasmagóricas). Talvez as manifestações
de rua, o tohu-bohu, possam ser o
início, “mas existe um só dado independente da linguagem” ? (SERRES, 1985, p. 119).
Referências
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2004.
AMSELEK, Alain. Entre
Réel et Réalité, Où se situe l’efficace de l’action thérapeutique? Cycle de
conférences PSYCORPS sur la place du
réel en psychothérapie psychanalytique, Conferência de 22 septembre 2010 à
Bruxelles. Disponível
em <www.psycorps.org/la-revue/sommaires?start=20>. Acesso em
17 de julho de 2013.
ARROUYE, Jean, Un indicible extrinsèque,
comunicação apresentada na journée
d’étude: “Photographie et Indicible”, 12 de maio 2011, Universidade de
Rennes 2, laboratório Cellam, publicado em Phlit.
26/02/2013. Disponível
em <phlit.org/press/?p=1288>.
Acesso em 17 de julho de 2013.
CHARIVARI. Disponível
em <http://www.cnrtl.fr/definition/charivari>.
Acesso em 17 de julho de 2013.
(Centre National dês Ressources Textuelles ET Lexicales, CNRS).
DERRIDA.
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MATHET,
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Littératures d’Aix-Marseille. Disponível
em <www.univ-montp3.fr/pictura/Dispositifs/RetourReel.php>. Acesso em
17 de julho de 2013.
MEDEIROS, M.B. “Que canta e ri”, in
AQUINO, F. & MEDEIROS, M.B. Corpos
Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: PPG-Arte/UnB, 2011.
RANCIÈRE,
Jacques. A partilha do sensível. Estética
e política. São
Paulo: edições 34, 2005.
RoseLee Goldberg. Performance
Art. From Futurism to the present. Singapura: Thames and Hudson,
1995.
SERRES,
Michel. Les cinq sens. Paris :
Grasset, 1985
STIEGLER,
Bernard. Reflexões
(não) contemporâneas. Tradução e organização de Maria Beatriz
de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.
TOHU-BORU. Disponível em <www.cnrtl.fr/lexicographie/tohu-bohu>.
Acesso em 17 de julho de 2013. (Centre
National des Ressources Textuelles et Lexicales, CNRS).
[i]
Este texto foi primeiramente publicado
na Revista Brasileira de Estudos da
Presença, v. 4,
n. 1 (2014). Aqui ele foi revisto e ampliado.
[ii] Lacan est
malheureusement parti d’une mauvaise lecture de la Bible affirmant « Au
commencement est le Verbe »[ii], qu’il a transformé
abusivement en : « Au commencement est le langage », alors que
la Bible hébraïque dit expressément « Dans les commencements était le
Chaos (tohu-bohu) », c’est-à-dire le Vide d’image, de structure, de
substance. AMSELEK, Alain. Entre
Réel et Réalité, Où se situe l’efficace de l’action thérapeutique? Cycle de conférences PSYCORPS sur la place du réel en
psychothérapie psychanalytique, Conferência de 22 setembro de 2010, Bruxelles.
[iii] TOHU(-)BOHU,(TOHU BOHU,
TOHU-BOHU), subst. masc.
A. − Chaos
originel, état initial de la terre. Le tohu bohu
symbolise, à l'origine, une situation absolument anarchique.
B. − Souvent fam. Grand
désordre, agitation confuse. Synon. très fam. bordel, charivari, remue-ménage.
− En partic. Bruit confus, tumulte bruyant. Synon. brouhaha, tapage, tintamarre. [...]
C. − Ensemble confus de choses mêlées. Synon. fatras, fouillis.
[...]
dans la Genèse (1, 2) pour décrire l'état de la terre avant la création [...].
TOHU-BOHU. Disponível em :
<www.cnrtl.fr/lexicographie/tohu-bohu>. Acesso em 17 de julho de 2013.
Centre National des Ressources Textuelles et Lexicales,
CNRS.
[iv] Performance
realizada durante o evento Performance, corpo, política, organizado pelo Grupo
de Pesquisa Corpos Informáticos, Brasília, 2013.
www.performancecorpopolitica.net/?gallery=maria-eugenia-maria-corpo-contra-conceito
[v]
Disponível em <lupa.net/carabineros-utiliza-gas-y-agua-para-disolver-marcha-de-estudiantes>.
Acesso em 17 de julho de 2013.
[vi] CHARIVARI, subst.
masc.
A.− Vieilli. Concert
où se mélangent les sons discordants et bruyants d'ustensiles de cuisine
entrechoqués, de crécelles, de cris et de sifflets, qu'il était d'usage
d'organiser pour montrer une certaine réprobation devant un mariage mal assorti
ou la conduite choquante d'une personne. [ ...]
B.− P.
ext.
1. Grand bruit,
tumulte réprobateur. [...] En partic. Réprobation marquée par
le public devant une pièce de théâtre, un concert, considérés comme mauvais.
2. Bruit
excessif et discordant. [...]
Charivariser, verbe.
a) Trans. Faire un charivari (à quelqu'un). Au
fig. Critiquer violemment quelqu'un ou quelque chose en les rendant
ridicules.
Disponível em
<www.cnrtl.fr/definition/charivari>. Acesso em 17 de julho de 2013.
[vii] [...] indicible, c’est-à-dire un état de fait
dont il est réticent à reconnaître l’existence ou une réalité dont il ne
souhaite pas parler directement parce qu’elle le concerne intimement. [...] Cet
indicible est donc un sens assumé par la photographie sous le regard d’un spectateur
- l’auteur ou un personnage -qui trouve dans ce qu’elle représente matière à
conforter un sentiment, un jugement, un regret ou une attente qui l’émeut
profondément et concerne durablement ses engagements existentiels – ce pourquoi
il n’est pas porté à en parler. ARROUYE, Jean. Un indicible extrinsèque. PHLIT. Répertoire de la photolittérature comtemporaine et ancienne.
Disponível
em <phlit.org/press/wp-content/uploads/2013/02/Arrouye_Un-indicible-extrinse%CC%80que.pdf>.
Acesso em 17 de julho de 2013.
[viii] Notre corps chaud, puissant, résistant,
dur donc, objet comptable à l´échelle entropique, associe et mêle cette dureté
à la douceur des énergies petites, information d´abord, sens et langage enfim. (SERRES, p. 1985, p. 121)
[ix] “Existe-t-il um
Seul donné indépendant du langage?” (SERRES, 1985, p. 119)
[x] Desculpo-me pela
longa citação. Esta devido ao fato da inexistência de tradução deste texto para
português.
La différence
entre ces notions [réel et réalité] est essentielle. Le réel se distingue
absolument de la réalité[3]. Cette dernière appartient au registre symbolique
(on baigne en effet dans un océan de langage). Elle se fonde aussi sur le registre
imaginaire. La réalité, « c’est le réel apprivoisé par le symbolique, avec
lequel va se tisser l’imaginaire ». Mais le réel est au-delà de la réalité. Le
réel, c’est ce qui, de n’avoir pas été vécu de la réalité, fait symptôme de la
vie. C’est ce qui ne marche pas, ce qui cloche dans l’existence. [...] Le réel
est inatteignable [...] étant irreprésentable, impensable, non spécularisable
[...] Lacan répète volontiers que le réel c’est l’impossible. C’est d’ailleurs
en quoi « la vérité tient au réel », dans la mesure où « la dire toute, c’est
impossible : les mots y manquent ». [...] Le réel postule une violence faite au
« bon ordre », à l’ordre du logos. Car le bon ordre, lui, ne veut rien savoir
de l’inacceptable du réel. Au cœur du système il y a ce manque, cette fissure
ou fission d’une violence radicale, intransitive. [...] L’enjeu n’est donc pas
toujours pour les écrivains, comme on pourrait le croire, de construire une
œuvre de fiction ayant des airs réels, mais de faire advenir le réel. Disponível em
<www.univ-montp3.fr/pictura/Dispositifs/RetourReel.php>. Acesso em 17 de
julho de 2013.
[xi]
Participaram destes eventos os artistas: Adriana Varella (EUA), Alex
Topini (Grupo Filé de Peixe, RJ), Ayrson Heráclito (BA), Beatriz
Provasi (RJ), Bia Medeiros (curadora, DF), Camila Soato
(DF), Coletivo ES3 (RN), Daniel Toso (Espnha), Daniela Felix e Rose
Boaretto (BA), Diego Azambuja (DF), Divino Sobral (GO), Edgar de
Oliva (BA-RJ), Fernando Aquino (DF), Fernando Ribeiro (PR), Fernando Villar
(DF), Ines Linke (MG), João Matos (BA), Jorge Manuel de
Oliveira Dias (Moçambique), Grupo Empreza (GO), Larissa Ferreira (BA-DF),
Lilian Amaral (SP), Lucio Agra (SP), Luara Learth (DF), Maicyra Leão (SE), Malu
Fragoso (RJ), Márcio Mota (gravações em vídeo, DF), Márcio Shimabukuro (SP-MG),
Maria Eugênia Matricardi (DF), Coletivo a Deriva (MT), Mariana Brites (DF), Nathalie
Bikoro (Gabão/Alemanha), Natasha de Albuquerque (DF), Nelda Ramos (Argentina), Pâmela
Guimarães (AL), Polyanna Morgana (DF), Simone Michelin
(RJ), Tuti Minervini (BA), Victor Carballar (Paraguai), Victor Valentim
(controle sonoro, DF), Yara Guasque (SC), Zmário (BA) entre outros.
[xii]
Disponível em <www.corpos.org/papers/bordas.html>. Acesso em 17 de
julho de 2013.
[xiii] La politique porte sur
ce qu’on voit et ce qu’on peut en dire, sur qui a la compétence pour voir et la
qualité pour dire, sur les propriétés des espaces et les possibles du temps. (RANCIÈRE,
2005, p. 14)
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