sábado, 19 de abril de 2014

Entrevista com Wolf Vostell. 1984. Salzburg



Entrevista com Wolf Vostell. 1984. Salzburg [1]

http://www.ida.unb.br/revistavis/Revista%20VIS%20V.%206%20n.%202%20julho-dezembro%20de%202007.pdf p. 98- 108.

Por Maria Beatriz de Medeiros


Introdução


Em 1982 me mudei para Paris, como bolsista do govêrno francês, para realizar Mestrado e Diplôme d'Études Approfondies (D.E.A.) em Artes, na Universidade Paris I - Sorbonne. No Brasil, como artista plástica, realizava intervenções urbanas colando litografias, ou impressos, nas ruas. Ao chegar em Paris me defrontei com seus imensos cartazes publicitários que tornariam meu trabalho uma agulha num palheiro. Fui levada, então, a confrontar estas publicidades ampliando as intervenções urbanas e visto que não poderia reproduzir meu trabalho em dimensões comparáveis às dos cartazes, tornei-os meu próprio material artístico, arrancando-os, recolando-os sobre outros. Isto na calada da noite ou melhor de madrugada. Trabalhei com diversos artistas e amigos - precisava inclusive de seguranças - , e fiz um trabalho maior com Suzete Venturelli. [2] 


intervenção: rue Gay Lussac, Paris, 1983.

Performance por Bia Medeiros e Suzete Venturelli.
Université Paris 1, Saint Charles, 1983


Em galerias fazíamos performances, onde vivíamos com cartazes publicitários, os comíamos, os vestíamos: antropófogas de images publicitárias, antropófagas de signos e de símbolos. Naturalmente, este trabalho foi comparado com o dos artistas Hains e Villeglé, Rotella e Wolf Vostell. Sendo que este último foi o que mais interessou por sua estética "pesada", sua preocupação social, e seu caráter performático.

página do trabalho de D.E.A. Université Paris 1, 1984

Por tudo isto, realizei um dos trabalhos do D.E.A. sobre Vostell, sob a forma de entrevista. Nosso primeiro contato deu-se por carta. Vostell me informou que estaria em Salzburg em agosto oferecendo um curso na Sommerakademie e realizando uma exposição. Marcamos a entrevista para 16 de agosto de 1984. Vostell falava um bom francês embora, por vezes, procura-se as palavras. Mas alegando dificuldades em falar francês me solicitou que o trata-se por "tu", para facilitar a conversação. No auge de meus vinte e poucos anos me dirigir a ele através do "tu" me perturbava - não bastasse sua fama, sua altura e largura eram impressionantes - e, ao mesmo tempo, trazia uma cumplicidade nunca esperada. Falávamos, também, por vezes, em espanhol (que ele arranhava por causa de sua esposa Mercédes).

Chegando à cidade de Salsburg, alguns dias antes, me deparei com uma cidade, linda naturalmente, exótica para olhos brasileiros certamente, onde o que mais me saltava aos olhos eram os cartazes da exposição de Vostell colados em todos os cantos. A dissertação de D.E.A. foi toda datilografada sobre seus cartazes rasgados. 

cartaz da exposição de Vostell rasgado por Bia Medeiros e incluído no trabalho de D.E.A.


Entrevista


"O dé-coll/age é uma manifestação de violência." [3]

MBM- No catálogo editado pela ARC 2, por ocasião de tua exposição no Museé d'Art Moderne de la Ville de Paris, em 1974, seus dé-coll/ages são apresentadas como uma "manifestação de violência". Nós, Suzete Venturelli e eu, rasgamos cartazes publicitários, arrancamos, colamos sobre outros,... e nós acreditamos que estas ações não são um ato de violência, mas, sim, um ato de legítima defesa.
WV-    Não disse que os dé-coll/ages são uma manifestação de violênica. As dé-coll/ages são como a vida, isto é, a vida é um processo de dé-coll/age. Como quando eu falo com você, e você está aí, e que nós gastamos energia, e eu envelheço, e você envelhece, e nós nos modificamos... Isto é um processo de dé-coll/age e a forma representa a vida dos objetos.

"Vostell se opõe com coerência àquilo que ele chama "agressão urbana", à qual ele opõe uma "agressão artística". [4]

MBM- Mas Frank Popper afirma que você opõe a uma "agressão urbana, uma "agressão artística". A arma contra a violência é o riso ou a agressão?
VW-   Não conheço este texto. Você poderia o fotocopiar e me-lo enviar?
          A contestação deve ter a mesma estrutura que a vida, a mesma estrutura da agressão que sofremos. Ela deve ser feita de todas as formas que nos incomodam: o excesso de informação, a estrutura burocrática, a repetição... são meios de ação que provocam.
MBM- Nós dizemos que, com o nosso trabalho, nós intensificamos a publicidade até o limite do tolerável.
WV-    Sim, é isto. Estou de acordo. Mas é preciso ir além de um comentário decorativo.
MBM- No catálogo editado pela ARC [5] temos a impressão que você pensa que o artista é um privilegiado. Você afirma que o artista deve "fazer compreender", que ele deve "revelar", como se ele soubesse mais, como se ele conhecesse mais que os outros seres humanos. Se "cada homem é uma obra de arte", como pode o artista ser um ser privilegiado?
WV-    Sim, o artista é um privilegiado. Mas isto não é importante. O privilégio é um estatuto não-praticável. O artista é um privilegiado, a natureza fala através dele. O talento implica privilégio, o privilégio implica responsabilidade. Existem artistas e teóricos da arte que afirmam que todos os homens podem ser artistas, isto é hipócrita. Todos podem ser artistas, mas haverá sempre alguns que serão mais fortes. O sistema sensível deles é mais desenvolvido. Quando eu digo "cada homem é uma obra de arte", isto é uma fórmula. De fato existem ultra-sensíveis como existem ultra-feios, assim como entre as obras de arte. Existem diferenças.
MBM- Nuances?
WV-    Sim, mas é preciso ressaltar que, quando eu declaro que todo homem é uma obra de arte, eu excluo as formas criminais. Pois a vida é santa. Os happenings são a santificação da vida. No entanto a arte é o espelho e a memória desta vida e, como tal, ela é um espelho das formas destrutivas. Mas o accionismo viennense, Nitsch, isto eu não gosto.
          Se uma pessoa tem o sistema nervoso desenvolvido, se ela produz arte, ela é artista. A obra de arte, assim como o homem são um sistema complexo. É preciso mudar a sensibilidade das pessoas para que elas levem suas vidas como arte. A psicanálise, por exemplo, é um instrumento da arte. Eu estudei muito a psicanálise, a psico-estética. A verdadeira revolução na arte será quando pudermos ver aquilo que uma pessoa pensa em uma tela, sem que para isto tenhamos necessidade de uma câmera.
          De fato, existe uma grande confusão sobre minha obra. Isto me incomoda.

MBM -  Você declarou "a vida encontrada como arte", no entanto tenho a impressão que os dé-coll/ages, assim como os cartazes rasgados de Villeglé, já que eles pertencem a coleções particulares, que eles são a vida parada, a vida petrificada, transformada em objeto de consumo de luxo para iniciados.
WV-    A arte é um comentário sobre a vida.
          Parei com os dé-coll/ages em 1964. Abandonei os cartazes publicitários em 1964 pois eles não representavam a sociedade. A publicidade é como uma droga, ela acalma.
          Acredito que descolar cartazes durante toda a vida é tedioso. Por exemplo como Marcel Duchamp que passou toda sua vida voltando ao urinol. Eu o critico, mesmo que ele muito tenha me ajudado.
          Eu, eu urinei no urinol. A urina é arte. A urina é fenomenológica. Isto aconteceu na Espanha em 1966. Era um happening que se chamava: Detras del Árbol. Duchamp no comprendio Rembrandt. Era um happening sobre uma gravura de Rembrandt, onde ele havia desenhado um homem michando, e sobre o urinol de Duchamp. Este happening tratava de quatro líquidos: a urina, a água, o sangue e o perfume.

"O público não é formado pela sorte, tratava-se agora de participantes em número limitado." [6]

"Um outro happening realizado por Vostell, de 16 a 21 de março de 1966, em New York e Long Island se chamava "Dogs and chinese not allowed". Sua estrutura mais complexa - que para começar, não admitia só a participação de pessoas que já tinham vivenciado três dos cinco pré-happenings... " [7]

MBM- Será que você poderia me falar sobre a participação do público nos happenings? Limitar o número de participantes em um happening, não é uma atitude elitista?
WV-    Somente dois artistas fazem happenings com a participação do público: Kaprow e eu. Para mim o happening é a participação. Participação implica que uma parte da realização deste é transtida ao público. Em Fluxus era diferente, não havia participação do público, e é por isto que chamo as ações Fluxus se concertos: concertos Fluxus.
MBM- À absurdidade das situações quotidianas, aos comportamentos estereotipados propostos pelo sistema, às instituições, você opõe modelos de comportamento. Não são estes de certa forma também alienantes? (A pergunta se referia às partituras para a participação do público em happenings, partituras onde se encontravam instruções sobre o comportamento apropriado para a ação, onde Vostell propunha modelos de comportamento.
WV-    Proponho modelos de comportamento por que é necessário que todos estejam de acordo. Se existe alguém que quer fazer algo diferente, discutimos. Mas é necessário seguir as partituras.
          A intenção do artista deve ser de criar uma situação. Para mim, o happening de Ulm foi o happening ideal. [8] Todo tipo de gente participou. Algumas pessoas tiveram fome durante o heppening, outras tiveram pequenos problemas como, por exemplo, ter que telefonar, e eles não sabiam como resolver, outros se tornaram agressivos. Uma pessoa muito me insultou durante o happening mas ela não o abandonou. Uma outra pessoa, que se mostrara contra o happening, me enviou uma carta, seis mêses depois, me fazendo uma declaração de amor.
          Na arte, nada é definitivo. Um happening é misterioso. Criamos uma situação e devemos esperar que as pessoas reajam com suas semsibilidades triviais.
          O happening é uma forma de jogo, uma maneira de se liberar. Não é como o esporte, ou como a escola, que são competitivos. O happening não é competitivo. E a arte não é elitista. Se a arte fosse elitista nós estaríamos perdidos. Os dé-coll/ages, por exemplo, são um desvio da realidade e da vida, em quatro níveis: sociológico, psicológico, estético, e jornalístico. Eles são uma mudança do cartaz.
          Minha primeira ação foi "Le théâtre est dans la rue", em Paris. Nesta época eu estava interessado por poesia, e a ação consistia em tomar o cartaz rasgado como uma partitura, uma partitura para o comportamento humano. Era preciso ler os fragmentos de cartazes (letras e imagens) como poesia.
          Eu fui aluno de Cassendre, que foi o inventor dos grandes cartazes, nos anos 20. Eu parti, para este happening, do título de seu livro: "Le théâtre est dans la rue". Eu parti dos cartazes rasgados, pois eu percebi, na época, que eles eram mais fortes que toda a arte que se encontrava nas galerias. Assim também os acidentes de carro, ou as coisas destruídas, que são muito fortes porque eles foram momentos fortes e porque eles são autênticos. Um carro destruído produziu tragédia.
          Eu me formei contra a estética da Escola de Paris, contra a arte abstrata, contra o gosto burguês.
          Eu trabalhei fora da Paris durante os anos 60, pois a sociedade nos Estados Unidos e na Alemanha eram mais provocantes e as pessoas se interessavam mais pelo meu trabalho. É preciso dizer que Paris descobriu a arte dialética mais tarde. Entre 1961 e 1970 eu não fiz exposições em Paris.

"A superposição de níveis diferentes da realidade, de conteúdos aparentemente sem ligação entre eles, revela, uma vez mais, a alienação e as causas desta alienação." [9]
"Esta aproximação das formas e dos conteúdos a partir da obra mesma, é dialética. Ela não conhece verdade única que representaria as coisas, mas ela procura a verdade na contradição, na terceira possibilidade." [10]

MBM- Teu trabalho se identifica com a dialética negativa de Adorno?
WV-    Admiro Adorno, admiro a fantasia dualislística. Eu admiro a filosofia crítica e analítica. Mas tenho uma observação a fazer. Quando Marcuse e Adorno falam de cultura, eles sempre falam de teatro e de música. Eles não conhecem a pintura. [11]
          Minhas idéias vêm de minha prática. São causalidades e meu gosto, ao mesmo tempo. As formas trágicas, eu as tomo emprestadas da vida, que é positiva e negativa. Como filósofo, eu citaria Spinoza, que descobri recentemente e que é muito importante para mim. Ele disse, por exemplo, que quando uma pessoa abre uma janela, que o sol entra e esquenta o quarto, muitas vezes a pessoa pensa que é ela que o esquenta. Mas, ao contrário, é o sol que o esquenta. O homem se acha mais importante que a natureza. E ele não vê que abrir a janela é um processo divino, aquele da vida.
MBM- Eu adoro os carros cimentados. Eu penso que eles sintetizam e tornam evidente vários aspectos da vida atual.
WV-    Obrigado.
MBM- Mas,  o carro que foi cimentado diante da galeria Intermédia ("Circulação bloqueada", Cologne, 1969), sobre um platô com rodas, me parece muito limpo, muito comportado. Ele não atrapalha. Não seria necessário realmente incomodar, sabotar, cimentar o carro na rua e realmente bloquear a circulação?
WV-    Fiz três carros até agora. Eu penso em fazer um quarto. Ele se chamaria "El tango de béton". Ele seria a realização de um de meus sonhos, que era de fazer uma escultura invisível. O carro cimentado deveria ser enterrado em um lugar desconhecido. Ele seria um grande carro, cheio de jornais de todo o mundo, intactos, e do mesmo dia. Como escultura seria uma homenagem aos desaparecidos na Argentina. Eu fiz o projeto sobre fotografias dos campos na Argentina, mas não se verá nada. Os desenhos do projeto são somente para que eu encontre os meios de realizá-lo. É preciso sempre encontrar os meios de pagar os happenings, é preciso encontrar um mecenas. É um problema, pois é preciso uma pessoa séria, que não irá procurar saber onde está o carro, que não irá o desenterrar.
          Se não fôr possível realizar este projeto na Argentina, eu o farei no Brasil. Ou, à la limite, à Anvers, na Bienal da escultura. Lá existe um terreno onde eu posso o enterrar, e ele estaria lá, mas ninguém saberia exatamente aonde. É preciso que não haja marcas. Eu o enterraria, depois eu plantaria árvores por cima, no terreno. (imagem 4: desenho feito por Vostell durante a entrevista)

Depois desta entrevista ainda estive outras vezes com Vostell, e com Mercédes. No entanto, o mesmo estava sempre cercado de alunos, do diretor da escola, havia o crítico de arte Amnon Barzel, Allan Kaprow, fãs... Foram jantares com enormes mesas, divertidos, e sempre trilíngues. Algumas vezes Vostell pode, de certa forma, continuar nossa entrevista e transcrevo aqui algumas de suas falas, soltas.

WV-    "Você deveria ver o catálogo de minha exposição em Portugal (editado pela Fundação Gulbenkian). Os portugueses teem uma maneira completamente diferente de ver a coisa. E os espanhóis também. Na Espanha, eles fizeram um livro sobre o meu trabalho cujo título é Vostell, arqueólogo contemporâneo. Os alemãs jamais teriam compreendido meu trabalho desta forma.

WV-    Nossos trabalhos se parecem pois nós vivemos, pela primeira vez na história, a ação, a destruição, o acidente de carro, o transbordamento de informações, o engarrafamento.

Bia Medeiros em performance. Galerie Donguy, Paris,1984


WV-    Ser artista não é fácil. Existem muitos coisas a serem vistas, a controlar. Primeiramente é preciso construir o mito, depois é necessário construir um reino em volta de si-mesmo.

Meus momentos com Vostell não foram suficientes para esclarecer todas as dúvidas que tinha sobre seu trabalho. Mas talvez como queria Mercédes - assim ela se exprimiu- , "El enigma Vostell" deva continuar. [12]

desenho feito por Vostell durante entrevista para explicar projeto de Vostell não realizado na Argentina


 
cartaz da exposição de Vostell rasgado por Bia Medeiros e incluído no trabalho de D.E.A.




[1] Extraído da dissertação de D.E.A. em Artes Plásticas (técnica e criação): "Wolf Vostell", realizada em 1984, professora do seminário Germaine Cizeron, orientador Jean Rudel, Universidade Paris I - Sorbonne.
[2] Suzete Venturelli é brasileira, obteve seu Doutorado na Universidade Paris I - Sorbonne em 1988. Atualmente é professora na Universidade de Brasília.
[3] Merkert, John. Artigo "Vostell. Cronologia: 1954/1974", in Vostell. Environnements. Happenings. 1958/1974, catálogo da exposição de Vostell no Museé d'Art Moderne de la Ville de Paris, ed. ARC 2, 1974.
[4] Popper, Frank. Artigo "Arte, Anti-arte, cidade", in Revue d'esthétique, no ¾, L'art de masse n'existe pas, ed. U.G.E., coll 10/18, 1977. Pp 215 à 230, p. 230.
[5] Op. cit.
[6] Merkert, John. Artigo citado, p. 40.
[7] Idem, p. 44.
[8] Vostel se refere ao happening "À Ulm, près dÚlm, autour d'Ulm", 1964, happening de 8 horas no aeroporto militar perto de Ulm. Participantes: 300 pessoas.
[9] Merkert, John. Artigo citado, p. 24.
[10] Idem, p. 67.
[11] A afirmação é confirmada por Marc Jimenez, in Rumo a uma estética negativa. Adorno e a modernidade. Le Sycomore, Paris, 1983: "Adorno… só dedica às obras pictóricas, episodicamente, algumas notas fragmentadas" (p. 345) e nota 13 de "Anatrépico": "Adorno, em 1958, no Jeu de Paume, "rabisca"algumas notas sobre o impressionismo... estas breves considerações... não são nem mesmo, de fato, esboços. No fim destas notas fugidias, Adorno se indaga ... "Eu o ignoro", confessa Adorno, "em música eu o saberia" (Im Jeu de Paume gekritzelt, p. 47), (p.421).
[12] referência ao livro de Mercédes Guardado Olivenza Vostell. El enigma Vostell, Extremadura, Edición Sibéria Extremena, 1982, realizado por ocasião dos 50 anos de Vostell.

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