BORDAS RAREFEITAS DA LINGUAGEM
ARTÍSTICA PERFORMANCE
SUAS POSSIBILIDADES EM MEIOS TECNOLÓGICOS
Maria Beatriz de Medeiros
“Adão
e Eva deixam a eternidade e a felicidade
do Paraíso para preferir o efêmero”
Bernard
Teyssèdre, notas de aula, Sorbonne, 15 de novembro de 1984
Podemos situar o
aparecimento da Arte da Performance como linguagem artística multidisciplinar,
geralmente com eixo nas Artes Visuais, porém ainda não identificada como tal,
no Futurismo e no Dadaísmo. Sua atividade se estende por ações de Tristan
Tzara, Francis Picabia, Marcel Duchamp, John Cage, Grupo Fluxus, Grupo Gutaï,
entre outros. Denominando-se Performance Art, Happening, Body-art ou
Art Corporel, a encontramos intensa de 1960 a cerca de 1975: Allan Kaprow, Wolf Vostell, Yves Klein, Michel
Journiac, Dennis Oppenheim, Vito Acconci, Gina Pane, Chris Burden, Gilbert and
George, Nitsch, Maccheroni. Nos anos 80, a
Performance está sempre presente, embora não como uma das linguagens artísticas
mais utilizadas: Joseph Beuys, Daniel Buren, Ben d'Armagnac, o Grupo Kitchen de
New York, Grupo General Idea, Tom
Scherman, Ulay e Marina Abramovic,... Recentemente citaríamos Guillermo
Gómez-Peña e Roberto Sifuentes (desde os anos 80), Ulrike Rosenbach (desde os
anos 70), Regina Frank, entre outros; no Brasil Renato Cohen [i],
Alex Hamburger, Eduardo Kac, e o Grupo de Pesquisa CORPOS INFORMÁTICOS, por mim
coordenado, entre outros. A linguagem artística Performance, por envolver
elementos estéticos novos modifica o conceito de arte, e redimensiona o Teatro,
citaríamos Trisha Brown e Pina Bausch (Dança-teatro). Os novos elementos
estéticos introduzidos pela Performance são: o corpo do artista como objeto da
arte; o tempo como elemento da linguagem e a efemeridade da ação; a
participação do público, participação não só intelectual e emocional, mas
também física do público; e a multidisciplinaridade na arte.
Corpos Informáticos: Performance em telepresença dedilhando com dados.
Perfor4 (SP-rede)
Hoje, com todas as
linguagens artísticas confrontadas, não às novas tecnologias, mas às
onipresentes tecnologias, falaremos sobre as possibilidades da Performance
potencializadas por esta onipresença. Vejamos, primeiramente, de que formas tem
sido compreendido o termo "performance". Lembremos que no Brasil o
verbo "performar" não existia até recentemente e o termo
"performance" aparece, apenas, nos anos 70 tendo sentidos
diferenciados para diferentes áreas do conhecimento, grosso modo distinguiríamos: Performance Art, desempenho de uma
máquina e no sentido lingüístico do termo (John Langshaw Austin).
Como vimos,
rapidamente, a arte tornada ação corporal efêmera, que denominamos Performance
Art, nasceu como Happening (evento),
alguns a chamaram Body-Art, outros Art Corporel, todos
reivindicando para si a faísca inicial de um novo movimento artístico. Allan
Kaprow, em 1984, em Salzburg, me declarou que apenas Wolf Vostell e ele faziam happenings, segundo a concepção dele de Happening, isto é, "ação artística
envolvendo participação ativa do público".
François Pluchart,
escrevendo em língua francesa, onde o verbo "performar" e o termo
"performance" só aparecem recentemente, preferiu intitular seu livro L’art corporel e, neste, assim se
coloca: “Se a expressão 'arte corporal’ tem o mérito de manter a questão do
corpo no interior do domínio da arte, a palavra ‘performance’ gerou os piores
mal-entendidos”. [ii]
Arnaud Labelle-Rojoux,
também escrevendo em francês, intitulou seu livro “L’acte pour l’art” e escreveu, sem discriminação, sobre os
futuristas e dadaístas, a história dos happenings,
da Art Corporel,... e termina
afirmando: “qualquer forma que ela (a arte ação) tome, é, no entanto, o fundo
que é impossível negar: ela ‘esteve lá’. Melhor: ela está lá. Ela se chama
“performance”, diferente, ela terá, amanhã, outro nome...” [iii]
Não se trata de rotular a linguagem artística
Performance, que talvez seja aquela que mais tenha querido ludibriar as
classificações dos teóricos, críticos e jornalistas, mas de tentar percorrer as
bordas rarefeitas desta linguagem.
Lembremos que, para nós, a
arte é linguagem, no entanto, linguagem não codificável, linguagem incompatível
com palavras, linguagem irredutível. As linguagens têem por função a
comunicação. [iv]
A arte é comunicação não lingüística. [v] Para Kant, o belo dá prazer sem conceitos.
Nós diríamos que a arte é comunicação através de uma linguagem sem conceito,
proporcionando prazer ou desprazer. O próprio da arte é produzir afectos e
perceptos, diriam Deleuze e Guattari. A arte é comunicação, sem conceito,
através do afecto. Na comunicação de afecto não se distingue precisamente a
causa deste afecto, esta causa é inexplicável e seu efeito não é limitado.
A Performance Art é uma das linguagens da arte
(talvez a mais não linguistica), ela é arte ao vivo, a arte da presença por
excelência. Seu produto é processo e seu processo é efêmero, em princípio. O
corpo é sujeito e objeto da "obra" de arte, mas todos os recursos e
técnicas são simpáticos a esta arte multidisciplinar.
Territórios
incomensuráveis
O termo performance, ação, atuação, do
inglês, vem sendo utilizado em diversos sentidos conforme a área de
conhecimento a que se refere. Assim temos a performance de uma máquina, a
performatividade de um sistema. Performance e performatividade mesuráveis,
calculáveis na relação entre o in-put (energia dispensada) e o out-put
(produtividade alcançada). Para esta utilização do termo, em português, dizemos
desempenho, eficiência. Em francês accomplissement,
résultat chiffré. Jean-François
Lyotard, filósofo francês, em seu excelente livro "A condição
Pós-moderna" [vi],
nos lembra que este significado do termo performance é redimensionado, por
metáfora, ao "funcionamento" de uma sociedade. Lyotard lembra Austin,
em sua teoria da linguagem, onde este faz a distinção entre um enunciado
constativo (aquele que descreve um evento. Nós diríamos que um enunciado
constativo é da ordem da informação) e um enunciado performativo "que tem
a propriedade de possuir um sentido intrínseco que não se deixa compreender
independentemente de uma certa ação que ele permite realizar”. [vii]
Lyotard alerta para apropriações
inadequadas, desta teoria da linguagem, aplicada à dinâmica das sociedades, das
instituições, do poder, do sistema, enfim, da humanidade, e faz uma crítica ao
sistema que se legitima pela
performatividade, uma crítica ao determinismo, à filosofia “positivista da
eficiência”.
Como estamos dentro do campo artístico,
poderíamos tomar o enunciado performativo de Austin, e pensá-lo para a arte,
não no sentido de ação eficientemente realizada, mas no sentido de efeito
produzido. Podemos dizer, com Aristóteles e, mais perto de nós, com Gilles Deleuze e Félix Guattari [viii],
que a arte permite realizar afectos e perceptos, e que este afecto nada mais é
senão uma certa ação realizada no espectador. Para Aristóteles, o afecto seria
qualquer modificação sofrida pela alma, o afecto seria produzido pelas qualidades
sensíveis e aconteceria na alma. Longe estamos da performatividade de uma
máquina, que é resultado direto de uma causa específica, conhecida, que possui
um efeito, ambos mesuráveis e passíveis de previsão. Na arte, a causa do afecto
(da performance, da ação realizada no espectador) é inexplicável, e sem
conceito (Kant).
Diz Bert States, professor emérito do
Departamento de Arte Dramática da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara,
em seu texto "Performance as Metaphor", que performance é claramente um destes termos que Raymond Williams
chama “palavras-chave”, ou palavras (como Realismo, Naturalismo, mimesis,
estrutura) cujos significados estão “inextricavelmente constrangidos pelos
problemas que estão sendo usados para a discussão”. [ix]
As palavras evoluem
a cada dia por um processo caótico, onde a base semântica, por recorrência, tem
seus significados ramificados até alcançar territórios incomensuráveis. Nós
citaríamos, como palavras-chave: arte, linguagem, ciência, tecnologia,
multimeios, multimídia, interatividade, interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade, globalização, entre outras.
Bert States lembra
que, para performance, em filosofia, diríamos problema-limite (como para
sujeito, mundo), problema onde “o investigador se desloca para ser parte
deste”. [x] Esta colocação nos faz pensar, por um lado,
em auto-análise, onde o investigador é o "problema", e por outro
lado, em Roland Barthes onde este afirma que estamos “sempre em estado de
espetáculo”. [xi]
Neste último, somos todos, sempre, performers? Estamos sempre performando?
Assim como na auto-análise, esta colocação de Barthes está fadada ao impasse.
Será, então, que a Performance também não pode ser realizada, analisada,
tratada, por se tratar de um problema-limite? No nosso entender, existe uma
diferença entre palavras-chaves que, certamente evoluem como quer Bert States,
e das quais faz parte a palavra performance, e problemas-limite, problemas onde
o investigador é parte deste. Durante a Performance artística, o artista está
submerso em um problema-limite, porém, como conceptor e como avaliador,
respectivamente, antes e depois da ação, o artista necessita imergir e
sobrevoar o local da investigação, para poder prosseguir seu processo de
criação artística. Assim também, ao pensar o conceito de Performance, o
artista-performático se desloca para fora do problema. [xii]
Estudos sobre a Performance e
Etnocenologia
Estudos sobre a Performance representam, há cerca de 15 anos, um verdadeiro
movimento nos Estados Unidos. A Performance é, aí, vista de forma ampla, porém
estes Estudos estão, via de regra, situados, na Universidade, nos Departamentos
de Teatro. São disciplinas destes Departamentos: estudos sobre autores, atores,
e, verdadeiros, filósofos do Teatro; estudos sobre os movimentos artísticos
históricos; sobre as diferentes culturas; e ainda: Estética do Quotidiano, o
Sagrado no Quotidiano, Espaços da Performance, Tempo e Performance, Gênero e
Performance, Autobiografia e Performance, Ritual e Performance, Corpo em
Choque, Possessão, Arte Verbal e Performance, Produções Turísticas, e Comida e
Performance, entre outras. [xiii]
Em nossa
compreensão da Performance, e em nosso empreendimento em tentar compreender
esta linguagem artística em uma sociedade plena de tecnologias, certamente nos
interessa a Estética do quotidiano, os espaços da Performance e a relação tempo
e Performance; nos questionamos sobre o Corpo em Choque e pensamos a conjugação
texto-ação.
Em 1995, em Paris, foi criado o Centre International d’Ethnocénologie.
Este Centro nasce da vontade de
“multiplicar os pontos
de vista e
os enriquecer”. O termo “etnocenologia” está
apresentado no Manifesto, datado de 9 de fevereiro de 1995, como um
“neologismo” que “se inspira de um uso grego que sugere a dimensão orgânica da
atividade simbólica.” O manifesto apresenta a definição de etnocenologia: “o
estudo, nas diferentes culturas, das Práticas e dos Comportamentos Humanos
Espetaculares Organizados” onde “a palavra ‘espetacular’ viria do ‘performing’, em inglês, e este não se
reduziria ao visual; se referiria ao conjunto das modalidades perceptivas
humanas; e sublinharia o aspecto global das manifestações expressivas humanas
incluindo as dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e
espirituais”. [xiv]
À diferença da Etnocenologia não consideramos rituais místicos, encenações
folclóricas como Performance, no sentido que investimos ao termo, como veremos
no desenvolver do texto.
Com os Estudos da Performance e com a Etnocenologia constatamos a imensidão desta área de
conhecimento, no que se refere mais diretamente ao Teatro. Voltaremos, depois,
à Etnocenologia quando tratarmos da Teleperformance por estarmos nos referindo
à Performances que, ainda que mediadas por tecnologias, referem-se, modificam,
rompem , a "dimensão orgânica da atividade simbólica."
Diferentemente da
Etnocenologia, e da posição de alguns (muitos) pensadores da performance, nós
não consideramos o processo ritual como Performance. Pois esta ação jamais será
uma primeira vez, mas repetição: ato repetido que, porém, permanece sempre
atualmente performado. Evidentemente não podemos negar que, a cada vez que um
ator atua, repetidas vezes, dentro de um texto, contexto, ambiente e tempo
pré-determinados por um diretor ou por uma equipe, ou que, quando um indivíduo
participa de um ritual com marcações, textos, e ambiente determinados, há anos,
por desconhecidos ancestrais, ele, por vezes, entra em um estado no limite do
transe, ou literalmente em transe, e realiza uma determinada performance (ação). No entanto, não estaríamos tratando da linguagem artística
Performance, da qual estaria excluído quase todo o teatro, exatamente por sua
carga de repetição, de automatismo e não de criatividade, não de linguagem
própria. Inegavelmente algumas abordagens da linguagem teatral atual se
distinguem do explanado exatamente por
terem incorporado, da Performance Art, a possibilidade do ator estar a cada vez
vivenciando a repetição teatral com toda a sua emotividade. O ator teatral, em
geral, além de representar (investir de uma outra persona) e de
re-apresentar, ele não é autor. O autor cria o texto, o diretor cria a
encenação, o cenógrafo cria o espaço cênico. O ator interpreta dentro do que
foi determinado pelos primeiros.
O que caracteriza a ação corporal, o que faz com que
ela não tenha nada a ver com o happening e nenhuma forma teatral, fosse a
mímica, é precisamente seu carater de gesto único e não reprodutível. [xv]
O gesto único, e
não reprodutível, não é maquinal, isto é, inconsciente, reflexo, automático,
mecânico.
Lembremos, para maior atenção ao
empregarmos o termo "ritual", o que disse Michel Foucault. Este
referia-se aos “rituais da palavra”.
A forma mais superficial e
mais visível desses sistemas de restrição é constituída pelo que se pode
agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir
os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da
recitação, que devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de
enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo
conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia
suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem,
os limites de seu valor de coerção. Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos
e, em parte, políticos não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que
determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e
papéis preestabelecidos.
[xvi]
Para Peggy
Phelan, “performance é somente vida no presente. Performance não pode ser
salva, gravada ou documentada. Torna-se ela mesma através do desaparecimento” [xvii],
produzindo uma interação entre o self
e o espectador. Acreditaríamos termos chegado à linguagem artística Performance
pois Phelan refere-se à noção de presença e à interação do objeto de arte com o
espectador, no entanto refere-se à fotografias, pinturas, filmes, peças
teatrais, protestos políticos. Refere-se
às, certamente sensacionais, fotografias de Mappelhorpe e Cindy Sherman. As
fotografias destes dois artistas revelam o corpo humano real, com ou sem
máscaras, resgate do ser-corpo, do ser-matéria, do self, do indivíduo. Porém, a fotografia nunca soube nem representar
o real tal qual nós o percebemos, tanto pelas distorções das lentes, quanto por
seu suporte bidimensional, e, sobretudo, por ser estática.
A exposição “Sensation”, Royal Academy of Arts, Londres, 1997, apresentando a coleção de
Charles Saatchi, choca por ter este mesmo caracter de mundo cru, “erotismo,
violência, vulgaridade e humor”, “abandono de praticamente toda experiência
abstrata”, e “uma forte preocupação com a natureza corporal”, disse Felipe
Fortuna sem fazer referência à existência de performances nesta exposição. [xviii]
Laymert Garcia
dos Santos [xix]
toma Gilles Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon, onde este apresenta a
“lógica dos sentidos”, que “dirige-se ao cérebro, age por intermédio do
cérebro”, e a ”lógica da sensação”, “que age imediatamente sobre o sistema
nervoso que é carne”.
As fotografias
de Mappelhorpe e Cindy Sherman seriam da ordem da “lógica da sensação” por
agirem sobre a carne, por pulsarem “na intersecção entre o mundo da Natureza e
o mundo sufocante da Cultura Contemporânea". [xx]
Porém fotografias não podem ser consideradas Performances, por mais fortes e envolventes
que sejam. Serão arte, certamente, e serão registros, recortes de ações
retiradas de seus contextos, arrancadas de seus sons e cheiros, serão
registros, fragmentos de instantes desterritorializados. O tempo, elemento
estético imprescindível da Performance, terá sido desintegrado.
Phelan refere-se
à “estética da presença”, porém, na fotografia, na pintura ou na escultura,
esta presença refere-se apenas ao confronto: obra de arte-público; e este
público, em geral, é passivo, ainda que haja uma interatividade intelectual. Se
a participação intelectual do espectador for considerada Performance
acontecendo na consciência, no imaginário deste, toda obra de arte, toda obra
arquitetônica e toda a música pré-gravada e vivenciada, por vezes séculos mais tarde,
toda literatura, seria arte da performance. Toda “obra aberta”, como quer
Umberto Eco seria Performance. [xxi]
Na arte, poderíamos dizer, que há enunciado performativo (não enunciável) onde
a performance (afecto) acontece no espectador, sem que necessariamente
estejamos falando de Performance Art.
A reflexão de
Phelan é interessante, pois expande o campo da Performance e valoriza a
participação intelectual do espectador como parte da obra. Sem querer delimitar
as bordas rarefeitas da linguagem artística Performance, assim proceder
implicaria na completa dilatação e conseqüente desaparecimento, da mesma. Logo,
estamos de acordo com Bert States, que embora trilhando outras trilhas, chega
ao impasse e afirma que deveríamos nos perguntar “o que não é performance?”.
[xxii]
Qualquer obra de
arte precisa do espectador para realizar-se como obra, e fotografias
realizam-se como obras de arte desta forma, exatamente como pinturas ou objetos
artísticos. Na Performance a presença do espectador é requerida, não como espectador
a posteriori, mas como parte da obra,
enquanto elemento estético da obra de arte. Podemos referirmo-nos aqui a
instalações onde todo o ambiente da galeria é tornado elemento da obra, ou em
obras EX-SITU, onde toda grama, toda chuva ou nuvem passa a ser elemento da
obra, e elemento estético, pois órgão vital da mesma. Assim, na Performance
Art, a presença do outro, dos outros, é elemento estético, órgão vital.
RoseLee Goldberg
RoseLee Goldberg
trata especificamente da performance como linguagem artística nascida das Artes
Plásticas, ou melhor nascida de encontros de artistas: poetas, músicos,
artistas plásticos, nem sempre com a presença expressiva de atores. Vejamos as
colocações de Goldberg. Para ela, a Performance poderia ser uma realização solo
ou em grupo; efetuada com luz, música ou efeitos visuais feitos pelo artista ou
em colaboração; performadas em galerias, museus ou espaços alternativos;
raramente seguiria uma narrativa (porém seguiria ou não um script); composta de
uma série de gestos íntimos ou em teatros de grande escala visual; durar alguns
minutos ou muitas horas; ser espontânea e improvisada ou realizada (repetida)
muitas vezes; nesta o performer seria o artista, sua presença seria elemento
diferenciador das outras técnicas artísticas, porém, esta presença, Goldberg
afirma poder ser esotérica, chamânica, instrutiva, provocativa ou, ainda,
divertimento. [xxiii]
Goldberg
toca pontos essenciais da Performance, como a efemeridade, que traz o tempo
como elemento estético, a participação do público e o trabalho em grupo. No
entanto no final, deste trecho do livro, ela afirma “cada artista faz a sua
definição (de Performance)”, e novamente nos deparamos com uma imensidão sem
limites. Não queremos chegar a definir Performance, mas percorrer as bordas
rarefeitas desta linguagem artística para podermos analisar as possibilidades
de existência desta mediada por tecnologias vídeográficas, numéricas e
transmitidas à distância, ao vivo, e permitindo interatividade. Hoje a
Performance ressurge, via rede de comunicações, como presença virtual, com seu
tempo expandido e seu espaço tornado total.
Performance e tecnologias
Só
o toque pode tentar sentir uma ínfima parte do outro, sua capa. Só o corpo
desnudo revela esta ínfima parte e desejo de encontro (sic). O odor só se
revela na presença ou, aos poucos esvanecido sobre outros suportes. O som é
promíscuo: deixa-se capturar e reproduzir. O gosto e o corpo permanecem
inseparáveis. Assim só a Performance Art traz à arte elementos do desejo
carnal: amor e ódio; prazer e prazer estético (aesthesis). Se realizada ao vivo permite interação de seres
desejantes, isto é, o que consideramos característica maior da Performance. No
entanto, a Vídeo-performance carrega imagens e sons e pode expandir desejos,
potencializar presenças.
Assim, também na
Performance artística podemos falar em aumento da comunicação
artista-obra-público, aumento de interação com menor energia, espaço tempo
dispensados para obtê-las. A participação de monitores, vídeos, câmeras,
sensores táteis ou sonoros, redes de informação e outros instrumentos
tecnológicos podem, em uma Performance artística, serem exigidos no sentido de
uma otimização, mas contrariamente, o artista pode tirar proveito de uma baixa
performatividade dos equipamentos, e inclusive de uma participação
absolutamente outra da máquina, isto é uma performance, normalmente,
considerada erro.
Lembremos que as novas
tecnologias, ditas de comunicação, são, em verdade, tecnologias de informação e
realizam apenas uma promessa de interatividade. Nos fazem crer que navegamos
quando visitamos web-sites. Apertar botões, para "prosseguir" entre
páginas previamente criadas, não implica comunicação. Apenas com a tecnologia
que permite a Teleperformance Art, a rede de computadores pode ser denominada
rede de comunicação, pois aí existe compartilhar.
"… o sujeito exclusivo da arte
corporal é o corpo tal como a sociedade o vive, o oculta, o oprime ou o
rejeita. O sexo, o prazer, o gozo, o sofrimento, a morte, a fantasia (travestissement), os determinismos
coletivos e todas as noções que permitem tomar a questão central do corpo
socializado têm aí no entanto um relevo particular”. [xxiv]
A
arte corporal se interessa à materialidade do corpo. O Corpo que temos, hoje,
adquire uma nova consciência desta materialidade, da materialidade de seu corpo
"estendido pelas tecnologias". Esta "extensão" é apenas
metáfora, pois o corpo permanece o mesmo, mas lembremos que esta
"extensão" vem interferindo na consciência humana.
Nossa contemporaneidade está toda plena de
tecnologias, e estas tecnologias envolvem diferentes, senão todas, as
disciplinas do conhecimento humano (estética, antropologia, sociologia,
comunicação, linguagem, ecologia, lógica, matemática...) A Arte,
necessariamente, é reflexão e reflexo da nossa realidade, uma realidade
“grávida de um avião” (canta Marina Lima), grávida de tecnologias.
Do significado
de uma Performance faz parte o entrelaçar artista e público onde estes se
confundem, em um só movimento. Confronto direto. A que confrontos diretos somos
sensíveis hoje? Que corpo a sociedade vive, oculta, oprime, rejeita, se
perguntaria Pluchart? O sexo, as noções “que envolvem o corpo socializado"
são, muitas vezes, conscientizadas através dos diferentes suportes de captação
e difusão da imagem reproduzida (fotografia, cinema, vídeo, Internet,...)
O significado de
uma Performance depende de um reconhecimento de si no outro. Quais as
possibilidades de envolvimento com imagens, e sons, eletronicamente
reproduzidos, à posteriori ou ao vivo? Todas as possibilidades. Filmes eróticos
excitam, o números de pessoas que visitam as páginas eróticas da WEB é enorme
comparado às páginas de assuntos como arte, economia, ecologia ou outro.
Citei a dimensão orgânica
da atividade simbólica (Etnocenologia). Costumo me referir à ecologia
simbólica, na qual cada nova técnica, fundando uma nova compreensão do ser, do
outro e do mundo, reorganiza o eikos,
o habitat dos símbolos e suas
interrelações.
O corpo resiste a todo tratamento: Vídeo-performance,
Tele-vídeo-performance e a completa entrega à intensidades pulsionais. O
artista, primeiro conceptor, a obra de arte em geração via mídia, o espectador
tornado co-autor e sua resposta-obra de arte em geração via mídia, o artista
tornado co-autor: fluxo, ser cru no improviso da resposta imediata, trabalho em
grupo.
Porém concluamos com
Pluchart: “A arte corporal não é uma avant-garde.
É uma ferida permanente no buraco do pensamento binário”. [xxv]
A arte corporal assim como a Performance não é mais Vanguarda, no entanto mescladas
de tecnologias ainda tem muito a experimentar. “Uma ferida... no buraco do
pensamento binário”, não inviabiliza uma performance tecnológica pois, por ser
questionamento, expõe o outro da tecnologia. A Performance Art questiona a
performance da máquina enquanto sistema controlável, e tanto mais performático
quanto mais eficaz.
Nosso quotidiano banhado
por tecnologias gera a compreensão que temos de nossos horizonte. Os espaços
estão preenchidos por imagens eletrônicas e lugares virtuais. São as dimensões
somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais (Manifesto da
Etnocenologia) que estão sendo se reconfigurando. O corpo mediado, transpassado
por tecnologias não está (ainda) ritualizado, não é (ainda) folclore, mas
inédito, ou, pelo menos, as cartas não estão marcadas. De certa forma, mediada
por tecnologias, há expansão do teor inicialmente dado, por artistas que a
praticaram, ao termo Performance Art, mas permanece, no âmago, da
prática artística, o questionamento do conceito de arte, a negação do mercado,
as diversas provocações junto aos espectadores. Comunicação, e não informação,
e neste sentido, a Performance Art, tomando para si meios tecnológicos,
questiona-os cor-rompendo (sic) a dilatada sociedade da informação, aí
inserindo comunicação e Arte.
[i]
Renato
Cohen, Performance como Linguagem. S.P.: Ed. Perspectiva, coleção. Debates, 177
p.
[ii] François Pluchart, L’art corporel.
Paris: Images 2, col. Mise au point sur l’art actuel, 1983, p. 43. Todos
os livros e artigos citados com seus títulos em francês foram traduzidos por
nós-mesmos.
[iii] Arnaud Labelle-Rojoux, L’acte pour
l’art. Paris: Les Éditeurs Evidant, 1988, p.320.
[iv]
Lembremos
que estamos falando de uma comunicação plena de aspecto, de inarticulado
(Wittgenstein), de indizível (Barthes), e não da teoria alemã da pragmática
comunicacional (o primeiro Habermas).
[v]
No
dicionário brasileiro "Novo dicionário Aurélio", encontramos como
quinta definição de "linguagem" o que segue: "Tudo que serve
para expressar idéias, sentimentos, modos de comportamento, etc. e que exclui o
uso da linguagem."
[vi] Jean-François Lyotard, La
condition Pos-moderne. Paris: Les éditions de Minuit, 1979.
[vii] DUCROT, O., TODOROV, T., Dictionnaire Encyclopédique des Sciences du
Langage, Paris: ed. Seuil, 1972, p. 427,428. Lembremos,
mais uma vez que ao tomarmos Austin não estamos nos aproximando da teoria de
Habermas, e do conceito de speech act.
[viii] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Qu'est-ce
que la philosophie? Paris: Les éditions de Minuit, 1991.
[ix] WILLIAMS, Raymond, Keywords: a
Vocabulary of Culture and Society, New York, Oxford, 1976, p. 13, citado em
Bert States, “Performance as
Metaphor”,publicado na revista Theatre
Journal, março 1996, p. 1 a 26. p. 1.
[x] Bert States, op. cit., p. 2.
[xi]
“O
corpo está sempre em estado de espetáculo diante do outro ou mesmo diante
si-mesmo”. Roland
Barthes, artigo: “Encore le corps”, in revista Critique, tomo XXXVIII: Roland
Barthes, no 423/424, ag./set. 1982, pp. 645 a 654, p. 653.
[xii]
Bert
States lembra nosso hábito de usar palavras, principalmente palavras-chave,
como metáforas esquecendo-nos que são metáforas, e levando-as a uma gradativa
perda de denominador comum, a uma “transitividade ilusória”. Estamos, também
preocupados com palavras utilizadas como metáforas. Aquela que mais nos inquieta,
realizando pesquisa em Arte e Tecnologia, em Performance e Novas Tecnologias, é
o corpo estendido por tecnologias, as tecnologias como extensão do corpo, do
espaço-tempo e até da consciência. De fato, o corpo permanece corpo e, ainda
que as tecnologias permitam alcançar outros espaços e reduzir, de certa forma,
o tempo, ele (corpo) não se estende. Talvez, ao contrário, o que haja seja uma
contração, uma atrofia do corpo.
[xiii]
Nossa
principal referência foi o Departamento de Estudos da Performance da Tisch School of Arts, New York. Não
foram aqui listadas todas as disciplinas; foram respeitados todos os títulos
das disciplinas.
[xiv] O
termo “etnocenologia” está, ainda, assim definido no Manifesto: “Este
neologismo se inspira de um uso grego que sugere a dimensão orgânica da atividade
simbólica. Na origem, skené significa
uma construção provisória, uma tenda, uma choupana, uma barraca. Em seguida, a
palavra ganhou, por vezes, o sentido de templo e da cena teatral. A skené era o local coberto, invisível aos
olhos do espectador, onde os atores vestiam suas máscaras. Os sentidos
derivados são numerosos. Partindo da idéia de abrigo protegido e de abrigo
temporário, skené significou as
refeições feitas sob a tenda, um banquete. A metáfora gerada pelo substantivo
feminino resultou na palavra masculina skénos:
o corpo humano, enquanto alma que aí habita temporariamente. De certa forma, o
“tabernáculo da alma”, o invólucro da Psuchée
(Psiqué). Neste sentido aparece junto aos pré-socráticos. Demócrito e
Hipócrates a ele recorrem (Anatomia 1).
A raiz gerou, igualmente, a palavra skénoma
que significa, também, o corpo humano. Skénomata:
mímicos, malabaristas e acrobatas, mulheres e homens, produziam-se em barracas
de feiras no momento das festas (Xénophon, Hélleniques
VII, 4, 32). Traduzido por nós-mesmos.
Em português, admitindo a existência da
palavra performáticos poderíamos
redefinir a Etnocenologia como Práticas e Comportamentos Humanos Performáticos
Organizados. Ao que nos perguntaríamos que práticas e comportamentos animais
são conscientemente organizados, ou ainda, que práticas e comportamentos
humanos performáticos, logo
artísticos, não são de alguma forma organizados. Conseqüentemente
redefiniríamos a etnocenologia como Práticas e Comportamentos Performáticos, simplesmente, lembrando
que, como veremos, diferentemente da Etnocenologia, não consideramos rituais
místicos, encenações folclóricas como Performance artística.
[xv] PLUCHART, François, op. cit., ps. 38 e 39.
[xvi]
FOUCAULT,
Michel, A Ordem do discurso. Aula
inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São
Paulo: ed. Loyola,
1996.
[xvii] PHELAN, Peggy, Unmarked: the
Politics of Preformance, Londres-New York, Routledge, 1993, citado por Bert
O. States, op. cit., p. 9.
[xviii]
FORTUNA,
Felipe, “Individualismo Sensacional”, in Folha
de São Paulo, Caderno “Mais!”, 23 de novembro de 1997, p. 6.
[xix]
SANTOS, Laymert Garcia dos, “Sensação da
contemplação”, in Folha de São Paulo,
Caderno “Mais!”, 23 de novembro de 1997, p. 6.
[xx]
Ibidem
[xxi]
ECO,
Umberto, L’oeuvre ouverte, trad.
C. Roux de Bézieux. Paris: Seuil, 1965.
[xxii]
Um
texto, uma pintura não seriam performance por não serem atuais, por não serem
presença física do performer, afirma Bert O. States. Porém, complementa, “não
são performances porque são construídos em meios não humanos” (Bert O. States,
op. cit., p. 8). Usando a estratégia do próprio Bert O. States
poderíamos afirmar que metaforicamente um texto, uma pintura, uma instalação
poderiam ser projetos para performances, intelectuais ou até mesmo físicas,
performances do leitor. Gostaríamos de perguntar, à Bert O. States, o que
seriam meios humanos. Acreditamos que meio humano seria apenas o corpo nu. Se
um texto, uma pintura, são meios não humanos, roupas, adereços, músicas, luzes,
também poderiam ser assim considerados. Onde se estabeleceriam os limites dos
meios humanos em um espetáculo de Laurie Anderson? E na mais simples
performance onde o artista está nu com uma pintura corporal?
[xxiii] ROSELEE Goldberg, Performance Art.
From Futurism to the present. Singapura: Thames and Hudson, 1995, p.96.
[xxiv] PLUCHART, François, op. cit., p. 46.
[xxv] PLUCHART, François, op. cit., p. 4.
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